terça-feira, 30 de novembro de 2010

Mario Monicelli (1915-2010): doces molecagens e cruel carinho

Por Leo Cunha



Ao cineasta italiano Mario Monicelli, não se pode dizer que faltou reconhecimento: foi premiado em Berlim (3 Leões de Prata, por Il marchese del Grillo, Caro Michele e Padri e figli), Veneza (um Leão de Ouro por A grande guerra e outro pelo conjunto da obra, já em 1991), além de ser indicado quatro vezes ao Oscar, sem vencê-lo.

Com uma obra muito vasta (mais de 100 roteiros, mais de 60 direções), consagrou-se como um dos grandes mestres da "comédia à italiana". Seu filme mais famoso talvez seja O incrível exército de Brancaleone, mas não podemos esquecer a tragicomédia Parente é Serpente, ou o humor rasgado e sacana de Meus caros amigos (partes 1 e 2, sendo que a 2ª ficou conhecida por aqui como Quinteto Irreverente).

Entre seus temas mais frequentes estavam a amizade, a família, a política. E, mesmo nas comédias, freqüentemente tinha um lado amargo, ou mesmo negro. Aos 95 anos de idade, estava lúcido e ativo, mas muito doente, quando tomou a decisão de se jogar da janela de um hospital, ontem, em Roma.

Mais que nunca, merece ter sua obra relembrada e revista.

Festival de Brasília: "Amor?", de João Jardim

por Marcelo Miranda

Logo de início, Lilia Cabral aparece falando sobre como passou a entender seu papel de mulher no mundo a partir do instante em que apanhou do marido. O incômodo é imediato e evidente, tanto quanto a atenção ao que Lilia narra. Essa era a ideia central na proposta de "Amor?", quarto longa-metragem com direção do carioca João Jardim. O filme compete no 43º Festival de Brasília e teve exibição na noite de domingo.

Foi o mais bem recebido pelo público até o momento. E, mesmo antes do último competidor (o pernambucano "Vigias", previsto para a noite de ontem), será difícil tirar de "Amor?" o troféu de júri popular. Não é por menos. Jardim realiza uma mistura de documentário e ficção a partir das histórias de pessoas cujos relacionamentos amorosos foram ou são caracterizados por tipos variados de violência física.

João Jardim convidou atores conhecidos da TV e do cinema - entre eles, Silvia Lourenço, Julia Lemmertz, Mariana Lima, Ângelo Antônio, Eduardo Moscovis, Fabíula Nascimento, Cláudio Jaborandy e a citada Lilia Cabral - para interpretarem os depoimentos de anônimos que não podiam ser identificados. "Pelo teor do que falam, dá para entender como seria impossível que eles mesmos se expusessem", disse o diretor. "Menos que estética ou linguagem, fiz o filme na intenção de atingir a plateia pelo teor das falas. Usar rostos reconhecidos ajuda a legitimar e dar peso ao que está sendo dito".

O artifício foi dar aos atores a transcrição das falas de seus personagens reais e permitir que eles recontassem os fatos em conversas diretas para a câmera. Ainda que semelhante, o procedimento se difere do utilizado por Eduardo Coutinho em "Jogo de Cena". "Fiz ‘Amor?’ como instrumento para falar do tema, que é a violência entre casais. Não me interessava discutir os limites entre o que é verdade e ficção, pois o Coutinho esgotou isso no filme dele", garantiu João Jardim.

Ninguém do elenco teve acesso às gravações originais. Para o diretor, era primordial que houvesse total liberdade na forma como as histórias seriam apresentadas. "Busquei fazer com que cada participante do elenco se apropriasse daquilo que ia contar como se fosse ele mesmo, em vez de falar de alguém de fora. Daí eu não ter informado a biografia dos entrevistados, no intuito de que os atores inserissem, de alguma forma, as suas próprias biografias no que era contado".

Como fica claro durante a projeção de "Amor?", os homens demonstram mais resistência a falar do assunto do que as mulheres. Isso resvala para as interpretações, nas quais vemos as atrizes aparentemente sentindo de fato o que narram, enquanto os atores, por vezes, mais recitam do que absorvem o teor dos relatos. Foi algo sentido por João Jardim desde a pesquisa. "Sempre havia uma resistência, uma barreira dos homens, na hora de repetir as falas originais. Era bem mais fácil ter resultado com as atrizes do que com os atores", explicou Jardim.

*Originalmente publicado em O TEMPO no dia 30.11.2010

**Confira transmissão da premiação do festival, ao vivo, a partir das 22h desta terça-feira, dia 30, no meu endereço no Twitter ou do Facebook.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Festival de Brasília: "Os Residentes" e "O Céu sobre os Ombros"



por Marcelo Miranda


O fim de semana na 43ª edição do Festival de Brasília foi estrelado por longas mineiros. Os dois trabalhos do Estado na competição provocaram reações diversas, ao apresentarem propostas estéticas e (não) narrativas bastante desafiadoras ao senso "comum" ainda dominante, tanto na produção quanto na recepção do que se faz em cinema no Brasil (e no mundo, convenhamos).

Na sexta-feira, "Os Residentes" (foto acima), de Tiago Mata Machado, implodiu sentidos de "roteiro" ao lançar na tela uma série de situações aparentemente sem nexo que, juntas, formam um instigante tratado sobre relações diluídas. Numa casa dentro de um espaço nunca identificado, grupo de personagens marginais busca um tipo de convivência em meio a discussões sobre arte, estética, ética, signos e referências.

Filhote direto e assumido tanto do "cinema polifônico" de Jean-Luc Godard, como define Tiago, e também do vigor de Julio Bressane e Rogério Sganzerla, "Os Residentes" foi frontalmente rejeitado por parte da plateia e por alguns jornalistas e críticos aqui presentes. A postura inicial de Tiago durante o debate realizado no sábado não ajudou: reticente de explicações sobre o filme, o diretor se esquivou de algumas perguntas, para a fúria de repórteres interessados em "entender" o processo que levou a "Os Residentes".

Mas logo Tiago e equipe se soltaram e falaram sobre os caminhos da concepção do filme - caminhos obviamente tortuosos e cheios de enigmas indecifráveis, o que soa coerente com o que se viu no próprio projeto. "O cinema brasileiro precisa de oxigenação, e muitos filmes vêm aí com essa proposta. Vocês vão ter que se acostumar", provocou o diretor.

Na noite do mesmo sábado, o outro mineiro, "O Céu sobre os Ombros", de Sérgio Borges, teve acolhida mais calorosa. Num misto de documentário e ficção - sem necessariamente optar por um ou outro -, Borges acompanha três pessoas de Belo Horizonte em meio a rotinas tão ricas quanto simples: uma transexual prostituta que dá aula de psicologia; um atendente de telemarketing adepto do hare krishna e integrante da Galoucura (torcida organizada do Atlético-MG); e um escritor deprimido cujo maior feito é não querer publicar os próprios escritos.

"No dia a dia nós ficcionalizamos a vida e a reproduzimos na realidade. Os limites entre o que é verdade e encenação ultrapassam o cinema, eles estão no nosso cotidiano e na nossa forma de olhar e explicar o mundo. Eu quis transpor essa questão para o filme", disse Borges.

Ele usou duas câmeras para registrar um total de 180 horas dos três protagonistas, escolhidos a partir de pesquisas de campo. "Às vezes eu os acompanhava a alguns lugares, em outras ocasiões propunha situações a serem criadas, mas buscava, acima de tudo, que eles mesmos guiassem a encenação e os próprios movimentos". O resultado brilha na tela e faz com que "O Céu sobre os Ombros" soe como experiência cristalina de captação do simples ato de viver.

*Originalmente publicado em O TEMPO no dia 29.11.2010

domingo, 28 de novembro de 2010

Festival de Brasília: "A Alegria", de Felipe Bragança e Marina Meliande



por Marcelo Miranda


A definição veio de um crítico francês: "É um lindo ovni brasileiro". A frase cunhou texto sobre "A Alegria" após a exibição do filme no Festival de Cannes, em maio deste ano, na mostra paralela Quinzena dos Realizadores. Seis meses depois, o segundo longa dirigido pela dupla carioca Felipe Bragança e Marina Meliande abriu a competição do 43º Festival de Brasília, na noite de quarta-feira, causando estranhamento similar - ainda que ninguém o tenha chamado de "ovni".

O filme fecha uma trilogia informal denominada Coração no Fogo, precedida por "A Fuga da Mulher Gorila" (vencedor de prêmio da crítica na Mostra de Tiradentes em 2009) e pelo projeto coletivo "Desassossego", coordenado pela dupla de cineastas. "A Alegria" é, ao mesmo tempo, o ponto de partida e de chegada desse caminho. Surgiu a partir de um roteiro de Bragança, depois desmembrado nas duas outras realizações. Tanto "A Fuga..." quanto "Desassossego" foram feitos enquanto "A Alegria", mais ambicioso em termos de gastos e produção, aguardava a vez de ganhar o set.

Com orçamento de R$ 750 mil - parte dele vindo do fundo holandês Hubert Bals -, o filme de Bragança e Meliande lida com um universo pouco abordado no Brasil: mundos fantásticos, imaginação, monstros, superpoderes. Só que, diferente do que poderia ser considerado habitual, a dupla traveste o filme numa chave de melancolia e sensação de vazio e falta de posturas objetivas de uma certa camada da juventude brasileira, especificamente a carioca (já que o enredo se ambienta no Rio de Janeiro).

"A gente nunca pensou ‘A Alegria’ como um filme de gênero voltado ao público juvenil", apontou Felipe Bragança, em debate realizado ontem num hotel da capital federal. "Nosso interesse na juventude era premissa estética para construirmos alguma coisa a partir dele. Mas não foi (necessariamente) um filme feito para adolescentes". Marina Meliande completa: "Buscávamos a estranheza desde a fala dos personagens, porque não são pessoas em posturas confortáveis no mundo".

Encontrar esse tom de incômodo esteve presente no trabalho da dupla desde a escolha do elenco, que mescla atores profissionais (Mariana Lima, Maria Gladys e Márcio Vito) a amadores, escolhidos por redes sociais ou indicações e testes. "Na escolha da protagonista, por exemplo, sempre foi claro a nós que precisávamos de uma atriz disposta a um tipo de risco, insegurança e capacidade de se jogar contra alguma coisa", afirmou Bragança.

Os dois diretores conseguiram encontrar o que procuravam na jovem Tainá Medina, de apenas 16 anos e achada através de um perfil no Orkut. "A Tainá foi a única que tentou atravessar de fato a parede; as outras meninas, não", brinca Felipe Bragança, em referência a uma das cenas-chave do filme.

No debate em Brasília, jornalistas perguntaram a Bragança e Meliande sobre claras alusões a filmes do indiano (hoje nos EUA) M. Night Shyamalan, especialmente "O Sexto Sentido" e "A Dama na Água". "Na última década, o Shyamalan levou o cinema fantástico a um espaço de risco, de investigação, de descoberta. Não chega a ser uma referência direta da gente, mas nos identificamos com a ideia de que o lidar com o imaginário é importante e que o cinema brasileiro pode encontrar o seu lugar nesse caminho", disse o diretor.

*Originalmente publicado em O TEMPO no dia 26.11.2010

Festival de Brasília: "Contagem", de Gabriel Martins e Maurílio Martins



por Marcelo Miranda


"A gente vê muito cinema que parece vídeo, mas deve ser a primeira vez que eu vejo um vídeo que parece cinema". As palavras, ditas em tom empolgado e olhos brilhando, são de Carlos Reichenbach.

O veterano diretor paulista, homenageado no 43º Festival de Brasília, ficou encantado com o curta-metragem mineiro de ficção "Contagem", de Gabriel Martins e Maurílio Martins, exibido na noite de quinta-feira. Tanto que, durante toda a manhã de ontem, Carlão (apelido pelo qual é conhecido) se propôs a apresentar a dupla de realizadores a curadores de festivais de outros países. Devidamente munidos de DVDs contendo o filme, Gabriel e Maurílio conversaram com representantes de filmes brasileiros na França - o que pode render algum convite.

Nada mal para um projeto absolutamente independente, feito como trabalho de conclusão de um curso de cinema. A dupla financiou, do próprio bolso, os R$ 2 mil gastos nas filmagens, realizadas na periferia de Contagem, região metropolitana de Belo Horizonte. Selecionados para a competição de curtas de Brasília, precisaram pagar R$ 4 mil para o transfer do vídeo digital para película, formato exigido no festival. O dinheiro também veio por conta deles. "Estamos no cheque especial, mas muito felizes", exaltou Gabriel Martins, nitidamente emocionado e choroso, no palco do Cine Brasília.

Acompanhados do ator Leo Pyrata e do produtor André Novais (autor de "Fantasmas", exibido em Tiradentes e um dos curtas mais originais já feitos no país nos últimos anos), Gabriel e Maurílio celebraram o fato de estarem no mesmo evento que consagrou ídolos de ambos, como Julio Bressane, Rogério Sganzerla e o próprio Reichenbach. "Nem tem como expressar o que significa para a gente estarmos aqui hoje", disse Gabriel.

Recentemente, o grupo fundou a produtora Filmes de Plástico, no intuito de fazerem filmes de invenção dentro do esquema guerrilheiro que marcou "Contagem". Outros projetos já estão em andamento, incluindo um longa-metragem. Ironicamente, eles têm tido dificuldade de conseguir editais que banquem filmes baratos. "Com R$ 100 mil, a gente faz o nosso longa. Mas não tem edital de longa para isso! Só de curta e média. Não dá para entender", lamenta Maurílio.

*Originalmente publicado em O TEMPO no dia 27.11.2010

Festival de Brasília: "Transeunte", de Eryk Rocha



por Marcelo Miranda

Antes mesmo de tomar consciência do mundo, Eryk Rocha era um inquieto. Nasceu em Brasília em 1978, quando o pai, Glauber Rocha, filmava "A Idade da Terra", seu filme derradeiro. Viveu na Europa até os 15 anos, ficou na Colômbia (país da mãe, a videoartista Paula Gaitán) até os 20, estudou cinema em Cuba e hoje reside no Rio de Janeiro, sua autêntica terra natal, no corpo e na alma. Não é coincidência, portanto, que os filmes de Eryk trafeguem pela geografia, espaço e tempo - ora buscando memórias do passado ("Rocha que Voa"), outras captando o presente ("Intervalo Clandestino") e algumas revirando conceitos e lugares ("Pachamama").

Menos surpreendente ainda é Eryk estrear na ficção com um filme denominado "Transeunte". Exibido na segunda noite de competição do 43º Festival de Brasília, na noite de quinta-feira - em sessão dedicada por Eryk à mãe e "ao meu pai, Glauber" -, o trabalho provocou impacto excepcional na plateia e nos críticos e jornalistas. Apesar de se assumir como relato fictício, o longa-metragem é construído a partir do contato do protagonista - um recém-aposentado de 65 anos chamado Expedito - com a realidade, a urbanidade, os tipos que circulam por calçadas, ruas, avenidas e estabelecimentos comerciais ou de entretenimento.

A fagulha para "Transeunte" surgiu quando Eryk estava no Festival de Cannes, em maio de 2004, quando lá exibiu o curta-metragem "Quimera". Olhando ao redor, naquele dia a dia abarrotado de celebridades, câmeras, fotógrafos e glamour, o diretor pensou num contraponto. "Eu era um completo anônimo ali. Então me veio essa imagem, a de um homem que ninguém conhece: se ele morre, quem vai contar sobre sua passagem no mundo?".

A questão perseguiu Eryk Rocha durante os esboços de argumento rabiscados nos dias posteriores. Após entraves típicos da escrita, convidou a roteirista Manuela Dias para colaborar no script. "Me convenci de que, se existia algo possível de registrar o caminho de um homem como esse, no sentido de materializar a sua existência, esse algo seria o cinema".

Ao longo dos anos, Eryk foi aprimorando o argumento e decidiu que, para ser honesto com sua própria origem de documentarista, precisaria incorporar elementos do real ao recorte ficcional. Não que tenha sido pensado assim tão claramente: para o diretor, o trânsito entre um e outro é não apenas natural, mas enriquecido pela própria confusão que isso pode gerar. "Na sessão aqui em Brasília, dois espectadores me procuraram querendo saber se o filme era mesmo uma ficção ou se era um documentário sobre aquele personagem. Eu não podia querer um retorno melhor que esse", exalta.

A escolha pela fotografia em preto-e-branco também se deveu a uma escolha estética. "Desde aquela imagem inicial do homem desconhecido, tudo o que pensei era em preto e branco. Nunca cogitei que o filme fosse colorido".

Em "Transeunte", Expedito (vivido pelo ator baiano Fernando Bezerra), homem de poucas - ou nenhuma - palavras, circula pelas ruas do Rio de Janeiro sem qualquer tipo de perspectiva ou ambição. Mora sozinho num apartamento, não se incomoda com a barulhenta construção em frente, apenas fala de si quando perguntado por outros e parece só ter como ente querido a memória de uma mulher (sua mãe ou esposa, algo que o filme propositadamente confunde).

Num dia comum, ele descobre as maravilhas de um rádio de pilha, o qual carrega para todo lado. Esse rádio - e as músicas e notícias que saem dele - passam a servir de "voz interior" de Expedito, como define Eryk Rocha. "O que ele escuta faz comentários do que ele vê. Eu queria que o radinho de pilha fosse um momento de virada para esse homem", comenta Eryk.

*Originalmente publicado em O TEMPO no dia 27.11.2010