quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

"Girimunho", de Helvécio Marins e Clarissa Campolina



por Marcelo Miranda

No característico vocabulário do interior mineiro, girimunho é entendido como um pequeno redemoinho. A palavra pode ser aplicada tanto ao enredo do primeiro longa-metragem da dupla Helvécio Marins e Clarissa Campolina quanto à própria experiência de ambos na realização de um projeto acalentado há anos.

Depois de sete anos decorridos entre a ideia e a concretização, de 2011 não passa. Em montagem e finalização, "Girimunho" tem previsão de estar pronto nos próximos meses. Já pleiteia exibição em alguns festivais - por enquanto, sigilosos, com toda a discrição também tipicamente mineira.

Isso nem é o mais importante a Helvécio e Clarissa. Ambos estão muito mais atentos a ajustar os cortes do filme. O repórter do Magazine esteve, com exclusividade, na ilha de edição onde os dois têm se debruçado com a montadora carioca Marina Meliande para transformar as imagens brutas filmadas no pequeno município de São Romão, no Norte de Minas (521 Km de Belo Horizonte), em narrativa.

Pode parecer estranho falar em "narrativa" a quem conhece os trabalhos de Helvécio e Clarissa. Juntos, fizeram o curta "Trecho" (2006), premiado no Festival de Brasília; sozinhos na direção, ele fez "Nascente" (2005), e ela, "Notas Flanantes" (2009). Em todos, há rarefação, fragmentos, tempo aberto.

"Girimunho" será isso também, desta vez com "curva dramática", como frisa Helvécio Marins. "Tudo que está no filme é baseado na vida das personagens, que interpretam elas mesmas em situações reconstruídas por um roteiro que a gente tinha", explica Clarissa.

O script do carioca Felipe Bragança (também roteirista em "O Céu de Suely" e "No Meu Lugar") transita pelo universo de Maria Sebastiana, a Bastu, e de Maria do Boi. Senhoras em seus 83 anos de idade, moradoras de São Romão desde sempre, elas serviram de inspiração e motivação para Helvécio e Clarissa prepararem um filme protagonizado por elas mesmas.

Bastu e Maria do Boi não podiam ser mais diferentes. Para Helvécio, a primeira é a doçura em forma de gente. "Ela é uma contadora de histórias sem saber que é, pois conta de um jeito mágico, com toques surreais, que te fazem acreditar em tudo, por mais fantástico que seja".

Bastu, viúva do ferreiro da cidade, facilitou o trabalho da dupla. Bem diferente de Maria do Boi, de personalidade mais arredia. "Ela é uma batuqueira de tambor ancestral africano, autêntica mestre dos mestres", exalta Helvécio. Ele e Clarissa tiveram dificuldades em convencer Maria a fazer o que queriam para o filme. Clarissa diz: "Ela tem integridade e respeito pelas raízes, e isso é muito comovente. Mesmo sisuda, é uma figura doce. Esses contrastes a fazem misteriosa e especial".


Helvécio e Clarissa em foto de Lis Kogan

O girimunho que vai colocar as duas personagens em contato direto é a morte de Feliciano, marido de Bastu. "A partir desse acontecimento, a gente tenta acompanhar a forma como as duas se relacionam com o mundo e como a Bastu vai se reencontrar e se recolocar no ambiente, agora, sem o marido", adianta Clarissa. "A Maria do Boi entra no filme quase como uma entidade. A Bastu se movimenta, faz a história andar, mas a Maria sabe de tudo".

O choque se dará na relação com as novas gerações, encarnadas pelos jovens mostrados no filme - em especial no caso de Maria, que, temendo não ter a quem deixar seu legado, busca herdeiros para a tradição do batuque e da memória africana.

Aprendizados.
"Mentira eu não falo. Não vou fazer isso". A firmeza de Maria do Boi nessa frase permeou vários dos momentos de impasse na realização de "Girimunho", em São Romão. Mesmo os diretores explicando à batuqueira que se tratava de uma cena reencenada pela ficção, a intérprete de si mesma não abria mão de suas convicções.

"A gente podia até tentar passar uma conversa nela, mas nunca funcionava", conta o diretor Helvécio Marins. "A Maria é muito, muito inteligente, ainda que diga ser ‘analfabética’".
O jeito era ele e Clarissa Campolina rearranjarem o roteiro de modo a inserir situações nas quais Maria do Boi se sentisse à vontade de interpretar.

"Acho que, no fim, todas as mudanças foram para melhor", acredita Clarissa. "Tínhamos que ter o olhar para o que era mais potente dentro daquilo que tanto a Maria quanto a Bastu queriam nos oferecer".

A diretora conta que, por mais completo que estivesse o roteiro, na hora de filmar, a situação podia mudar. "A gente preparou a história do filme a partir do que elas nos contaram. Mas, quando você vai para o processo da filmagem, a forma como elas querem se mostrar diante da câmera é modificada. E era mais interessante a gente se abrir ao que acontecia fora do roteiro do que tentar forçar e direcionar o trabalho delas".

As locações foram as casas de Bastu e Maria do Boi, em São Romão, às margens do rio São Francisco, onde a dupla de cineastas morou por dois meses. O período permitiu que o filme brotasse devagar, no tempo das próprias personagens.

O Magazine assistiu a quatro cenas já montadas de "Girimunho". Nelas, é possível sentir o tom afetivo que Helvécio e Clarissa imprimem ao filme, numa construção cuidadosa de ambientação, com atores/personagens compondo o quadro em harmonia com o espaço.

Numa das cenas, Bastu fala sobre a perda do marido; em outra, Maria do Boi comanda uma grande festa noturna, na qual o som dos batuques promete ser um dos grandes atrativos do filme numa projeção em cinema - e o trabalho da dupla mineira O Grivo na edição sonora deve garantir ainda mais a qualidade.

A experiência de transitar do curta e média-metragem para um longa apenas somou à visão de trabalho e de vida da dupla de cineastas. "Sempre aprendo muito fazendo filmes", constata Helvécio Marins. "Muita gente me cobrava um filme longo. Eu nunca fiz porque não me preocupo com formatos".

Por sua vez, Clarissa Campolina concorda que o aprendizado é o maior ganho do processo. "Sinto que crescemos bastante fazendo esse filme, não apenas em relação ao trabalho, mas a nós mesmos".

*Matéria publicada no jornal O TEMPO em 6.2.2011

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