sábado, 19 de junho de 2010

Ouro Preto e a Cinédia



por Marcelo Miranda


Antes da Vera Cruz e da Atlântida, houve a Cinédia. O primeiro estúdio de cinema do Brasil foi fundado em março de 1930, no Rio de Janeiro, pelo então crítico Adhemar Gonzaga. Oito décadas depois, a quinta edição da CineOP - Mostra de Cinema de Ouro Preto resgata não apenas a história da ascensão e queda da Cinédia, como principalmente alguns de seus filmes mais emblemáticos. Numa oportunidade de ouro, cinco longas-metragens produzidos pelo estúdio carioca serão exibidos em cópias restauradas - um avanço indescritível em relação às versões de VHS ou de televisão que os cinéfilos vêm tomando contato nos últimos anos. A quem nunca viu esses filmes, melhor ainda.

A proposta, segundo Raquel Hallak, coordenadora geral da CineOP, é "entender o contexto social, político e cultural do surgimento da Cinédia a partir de um olhar contemporâneo". "Eram tempos de Humberto Mauro indo filmar no Rio, Adhemar Gonzaga fundando o estúdio e Getúlio Vargas subindo ao poder no Brasil", relembra Raquel.

Para o crítico e pesquisador Cléber Eduardo, colaborador da temática histórica da mostra, resgatar a Cinédia em pleno século 21 permite enxergar a própria trajetória das tentativas do cinema brasileiro em se tornar indústria. "É uma perspectiva histórica de contextualizar o que significava isso em 1930 em paralelo com a chegada de Vargas à Presidência, com seu discurso e projeto de industrializar o país, e como isso há 80 anos é uma questão ainda de futuro, não de passado", acredita Cléber. "A Cinédia nos lembra do futuro que nunca chegou de fato, de um sertão que não virou mar", completa, usando de referência o verso de Glauber Rocha para "Deus e o Diabo na Terra do Sol" (1963) no intuito de falar sobre a eterna luta nacional por posições pessoais diante de imposições coletivas.

Glauber, aliás, é lembrança oportuna em se tratando da Cinédia. Para o diretor baiano falecido em 1981, "Ganga Bruta", do mineiro Humberto Mauro, seria o primeiro grande clássico da produção brasileira - ainda que, quando lançado em 1933, o filme tenha sido um fracasso de público. "Ganga Bruta" é um dos títulos programados para o CineOP e ganha apresentação no Cine Vila Rica na próxima segunda-feira.

Outros são "Alô Alô Carnaval" (1936), que marca o início da caminhada bem-sucedida de Carmem Miranda; "Bonequinha de Seda" (1936), cujo ritmo foi moldado pelas comédias de Hollywood do período; e "Lábios sem Beijos" (1930), outro de Mauro, a ser exibido com uma orquestra ao vivo tocando trilha sonora inédita e original, composta especialmente para a mostra em Ouro Preto. Uma verdadeira viagem ao cinema primordial.

Estúdio era caminho natural
"Em meados dos anos 1920, em São Paulo, o próspero industrial Adalberto Almada Fagundes, proprietário de uma fábrica de louças, tentou ampliar seu ramo de atuação patrocinando a construção de estúdios e fundando a Visual Filmes. No entanto (...), identificou as dificuldades de produzir cinema no país e preferiu continuar num ramo mais seguro para investimentos - (...) fabricar louças".

O trecho é de "Cinema Brasileiro - Das Origens à Retomada" (2005, Ed. Fundação Perseu Abramo, 160 págs.), no qual o historiador Sidney Ferreira Leite radiografa os descaminhos da produção nacional desde o começo do século 20. E o trecho reflete bem a dificuldade de se criar a tão falada indústria de produção audiovisual.

A Cinédia surgiu nesse bojo, quando os filmes nacionais ganhavam importância (e eram valorizados pelo próprio governo, que criou leis para protegê-lo) e um grupo de realizadores pensava em tirar os filmes do aspecto primário como eram feitos e modernizar o seu processo de "fabricação". A fundação de um estúdio - com material e equipamento de ponta, muitos vindo de fora do Brasil - era caminho natural. "Foi o primeiro empreendimento de um sonho de industrialização que, historicamente, continua a ser um ideal cuja prática continua artesanal", diz Cléber Eduardo.

Alice, a herdeira
Era 1935. Cinco anos depois da Cinédia ser fundada, Alice Gonzaga nasceu. Filha do crítico de cinema e produtor Adhemar Gonzaga e da atriz Didi Viana, Alice cresceu junto com o estúdio fundado pelo pai. Herdeira de todo o acervo de filmes e documentos, ela será a pessoa a representar a Cinédia na CineOP, que começa hoje em Ouro Preto e segue até terça-feira.

Alice não é só a herdeira. É mantenedora, difusora e restauradora de tudo relativo ao estúdio nos últimos 35 anos. “Entrei, gostei e nunca parei”, resume ela, em conversa por telefone. Graças a Alice, filmes da Cinédia foram restaurados e ganharão lançamentos especiais nos próximos meses, incluindo uma mostra no Rio de Janeiro e a própria apresentação de cinco títulos na programação da CineOP.

As memórias de Alice Gonzaga em relação ao estúdio – reunidas no livro “50 Anos de Cinédia” – remontam aos primórdios. “Lembro de, bem criancinha, adorar ir até a Cinédia, porque lá tinha um jardim”, relembra ela. “Tinha umas estátuas de anões de um lado e peixinhos nadando nesse lago, então queria sempre ir”.

A produtora circulou entre grandes estrelas da época, como Gilda de Abreu e Carmem Miranda, e acompanhava o pai onde pudesse – e também onde ele não estivesse: a pequena Alice costumava circular pelas instalações da Cinédia mexericando nos trabalhos dos funcionários. “O pessoal tinha que engolir em seco, porque eu era chatinha, mas era filha do diretor”, conta ela, aos risos.

E Alice também foi “útil” à Cinédia. Quer dizer: uma utilidade oportuna. Como sempre zanzava pelo lugar, era ela a escolhida para testar novos equipamentos. “Se chegava uma câmera ou um refletor, precisavam de alguém para ver se estava funcionando, e eles me chamavam. Eu era a rainha dos testes e a cobaia dos novos equipamentos”.

Já adolescente, Alice foi estudar num colégio interno no Rio de Janeiro. Às quintas-feiras, tinha consultas no dentista. Aproveitava a saída, claro, para ir até a Cinédia. “Almoçava no estúdio e passava a tarde inteira lá. Vi muitas filmagens nessa época e lembro bastante, porque estava grandinha”. Certo dia, em meados dos anos 1970, Adhemar Gonzaga foi diagnosticado como vítima de dois infartos e com um “coração cansado”.

Ao sair do hospital acompanhando o pai, Alice se deu conta: o que seria da Cinédia se Adhemar morresse? “Eu não fazia ideia, nunca tinha pensado nisso, ainda que ajudasse meu pai a organizar livros e papéis”. Felizmente, Alice teve habilidade e talento para eternizar o que a Cinédia havia criado ao longo dos anos.

Adhemar Gonzaga, fundador da Cinédia e pai de Alice, morreu em 1978. Desde então, ela toca os trabalhos do estúdio, que parou de produzir para se dedicar a cuidar de seu próprio acervo. Apesar de vinculado aos anos 30, o estúdio da Cinédia produziu filmes até o final dos anos 40, quando a Atlântida, fundada em 1941, já atuava realizando as populares chanchadas e filmes musicais

*Originalmente publicado em O TEMPO no dia 17.6.2010

*Acompanhe a cobertura da CineOP no Filmes Polvo

2 comentários:

pseudo-autor disse...

Até hoje fico com a sensação de que algumas pessoas do meio fizeram de tudo para que não existisse indústria cinematográfica no Brasil. Uma pena! Resta, portanto, a saudade...

Cultura? O lugar é aqui:
http://culturaexmachina.blogspot.com

Arquivo Cine disse...

Cada vez que você posta algo,esta sempre melhor.
Parabéns...continue postando aqui, pois os que não estão em Ouro Preto,meu caso, fica sabendo atraves de você!

Abraços..