quinta-feira, 23 de setembro de 2010

"Terra Deu Terra Come": em busca do diabo



por Marcelo Miranda

"Eu encasquetei que queria saber como era um pacto com o capeta". Simplificadamente, foi esta a grande motivação do cineasta Rodrigo Siqueira ao pegar a estrada no final de 2004 e circular por regiões remotas de Minas Gerais. Sua inspiração? A literatura de Guimarães Rosa, em especial "Grande Sertão: Veredas" - a quem leu o romance, a curiosidade de Rodrigo em torno do pacto com o diabo vai ficar bem mais clara.

Tão instigante quanto seu ponto de partida foi o resultado do périplo de Rodrigo: o filme "Terra Deu Terra Come", troféu de melhor longa brasileiro do festival É Tudo Verdade, em março deste ano, e destaque em agosto numa mostra paralela do Festival de Gramado. Em vias de estrear no circuito comercial a partir de outubro, o filme também deverá ser exibido em novembro no forumdoc.BH.2010.

Serão as primeiras apresentações de "Terra Deu Terra Come" em sua própria casa. Rodrigo é nascido em Conselheiro Pena, pequeno município de 23 mil habitantes localizado no Norte de Minas, no Vale do Rio Doce, a 513 Km de Belo Horizonte. Rodrigo, 37, mudou-se para a capital aos 4 anos. Depois de algumas experiências locais com cinema e produção, migrou para São Paulo em 2001, e lá reside até hoje.

Mas Minas Gerais ainda impregna o imaginário e a criatividade de Rodrigo Siqueira. Tanto que não se satisfez em apenas ler Guimarães Rosa. Quis se imbuir da atmosfera roseana. O que ele não esperava era encontrar um típico personagem do escritor na figura do contador de histórias Pedro de Alexina, 82 (idade incerta). "Seu" Pedro encantou Rodrigo logo no primeiro encontro de ambos, em janeiro de 2005. "A gente conversou por horas, e eu, já com a câmera, gravei três fitas desse papo", relembra o diretor. "Resolvi voltar pra filmá-lo ao descobrir que ele era o único a ainda saber cantar os vissungos. Precisava fazer um registro daquele patrimônio imaterial".

Os vissungos são definidos como cantigas entoadas por descendentes de escravos africanos nos garimpos de diamantes e ouro das regiões de Diamantina, São João da Chapada e Serro, em Minas. Rodrigo encontrou Pedro de Alexina no Quartel do Indaiá, antigo quilombo perto de Diamantina, onde restam poucos moradores e no qual o contador é o último a ainda relembrar os vissungos. "Tem um genro dele que parece possuir ouvido musical, mas os jovens não têm interesse em dar continuidade a isso. Quando ‘seu’ Pedro morrer, há o risco desse patrimônio desaparecer junto com ele".

Ao propor realizar um filme com Pedro, Rodrigo diz que o contador - também benzedor, curandeiro e mestre do garimpo - pediu que, ao voltar, o cineasta lhe levasse uma sanfona. "Bom garimpeiro que foi, ele já estava fazendo negócio". Rodrigo retornou quase um ano depois - com a sanfona de oito cordas pedida por Pedro. Dali em diante, os dois tiveram uma cumplicidade ímpar e inesperada. O cineasta ficou um mês na região, conversou e tomou cachaça com o ex-garimpeiro e se permitiu ter a inesquecível experiência que resultou em "Terra Deu Terra Come".

Codireção
Não é por menos que Rodrigo Siqueira credita Pedro de Alexina como codiretor de "Terra Deu Terra Come". Ao estimular o ex-garimpeiro a narrar suas histórias e a falar da própria vida e das relações dos vivos com os mortos ("A morte, existe ela, ela anda com sua foice dela" é uma das frases-chave de Pedro), Rodrigo se viu dentro de um jogo de representações no qual o limite entre verdade e ficção já não importava. "Propus situações para entrar no que ele tinha a contar. Sempre que eu ia com uma ideia, ele vinha com outra, e nos alimentávamos", relembra Rodrigo. "Ele entrou no jogo, ficou empolgado e criou um teatro em torno de si mesmo".

A máscara usada por Pedro em alguns momentos do filme surgiu quase ao acaso, a partir de ações dele próprio. "O ‘seu’ Pedro tinha preparado a brincadeira do bumba-meu-boi e, numa noite, colocou aquela máscara e entrou no que parecia um transe, encarnando outra pessoa que não era ele. Havia ali algo de ancestralidade africana, e eu não pude deixar isso de fora".

O projeto de “Terra Deu Terra Come” venceu um edital de financiamento do programa Petrobras Cultural na categoria de patrimônio imaterial. No decorrer do desenvolvimento do que se tornaria o filme, o diretor Rodrigo Siqueira sentiu a necessidade de ir além, até pelo caráter abstrato do que tinha se proposto fazer.

“Não tem como tratar desse patrimônio de maneira isolada, pois ele tem a ver com o lugar e com a geografia onde as pessoas vivem, tem relação com a África, com dialetos e heranças”, aponta Rodrigo. “Eu buscava chegar à memória do ‘seu’ Pedro de Alexina, através de suas histórias, seus familiares, o garimpo, os mortos. Era a única forma de atingir aquilo que eu buscava. E não tem coisa mais infilmável que a memória”.

Enterro
O eixo de “Terra Deu Terra Come” é a morte de João Batista, senhor de 120 anos e cujo velório, orientado por Pedro de Alexina, é acompanhado pela câmera e pela presença física de Rodrigo Siqueira. O realizador não apenas registra, mas interage com o entorno do que acontece na comunidade de Quartel do Indaiá a partir da presença de um corpo. “A proposta era criar certa narrativa que permitisse uma atmosfera predominante em todo o filme, através de sequências flutuando em torno dessa atmosfera e que a interpenetrasse e ecoasse para além do filme”.

No decorrer da produção, Rodrigo faz com que Pedro de Alexina relembre todo o procedimento de “embalar” os mortos no intuito de permitir-lhes uma passagem bem-sucedida para o “outro lado”. No processo, claro, depara-se com crenças envolvendo a existência (ou não) do diabo – “aquele outro”, “o sujo”, “o tal”, como é referenciado várias vezes nas falas dos moradores do ex-quilombo.

Quando, enfim, acontece a caminhada do enterro, Rodrigo conseguiu captar em imagens e sons vários vissungos cantados por “seu” Pedro. “É de chorar, né?”, emociona-se o cineasta, ao ser perguntado sobre a sensação de estar ao vivo testemunhando a manifestação da ancestralidade.

Rodrigo Siqueira teve de base dois trabalhos sobre vissungos. O escritor Aires da Mata Machado tinha contabilizado 67 cânticos no livro “O Negro e o Garimpo em Minas Gerais”, publicado em 1943. Em pesquisa acadêmica recente, Lúcia Nascimento levantou aproximadamente 12 – o que mostra a extinção de uma tradição.

Durante a filmagem do velório de João Batista, Rodrigo Siqueira diz ter conseguido identificar alguns vissungos que não estavam na pesquisa de Lúcia, justo num momento de troca de bateria da câmera. Ao pedir para “seu” Pedro repetir o cântico, o ex-garimpeiro disse que não conseguiria. Naquele momento, Rodrigo constatou de vez que o instinto da tradição superava a busca pela memória.

*Originalmente publicado em O TEMPO no dia 22.9.2010

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