segunda-feira, 22 de junho de 2009

"Jean Charles" e a cidade de Gonzaga



por Marcelo Miranda *

Gonzaga -
No final de julho de 2005, a população do pequeno município mineiro de Gonzaga, distante 302 Km de Belo Horizonte, reuniu-se na praça principal da cidade em absoluta comoção. O motivo era o assassinato do eletricista Jean Charles de Menezes, morto pela polícia britânica no metrô de Londres ao ser confundido com um terrorista. Quase quatro anos depois, essa mesma população voltou a se confraternizar na noite de ontem, desta vez em torno da primeira exibição pública de "Jean Charles", filme de Henrique Goldman que narra a trajetória do humilde e adorado gonzaguense que virou notícia em todo o mundo por conta de sua morte trágica.

Aproximadamente cinco mil pessoas assistiram, num silêncio quase religioso, ao longa-metragem de Goldman. Na plateia estavam os pais de Jean Charles. "É muito emocionante", afirmou Maria Otoni de Menezes, a mãe. "Sentimentalmente, eu estou triste, mas toda essa festa e carinho me deixam alegre por ajudar a lembrar o Jean."

A tela de cinema foi montada num campo de futebol local pelos coordenadores do projeto Estação Cinema (patrocinado pela Usiminas e Arcelor Mittal, via lei estadual de incentivo). As centenas de cadeiras espalhadas não foram suficientes para comportar os habitantes de Gonzaga e os visitantes de diversas cidades vizinhas - como Virginópolis, Gonhães, Açucena, São Geraldo da Piedade e Governador Valadares.

O ator Selton Mello - que, na tela, dá cara, voz e trejeitos ao personagem-título - provocou celeuma entre os fãs. Entre gritos e berros, Selton contou a O TEMPO que a ideia da sessão em Gonzaga partiu dele. "Achava que era um dever nosso fazer isso aqui", disse.

Mineiro da cidade de Passos, o ator se sentiu retornando às raízes ao interpretar Jean Charles. "Ele tem muito de mim, e encarná-lo foi como buscar as minhas origens mais primitivas."

A rotina do município estava agitada durante a sexta-feira. Carros transitando de um lado a outro, jornalistas em busca de informações, moradores passeando curiosos pelas ruas ao olhar aquelas caras claramente estrangeiras diante da simplicidade dos habitantes daqui. "Só não movimenta o comércio", brincou um dono de farmácia. "Hoje é tudo festa. Uma festa para relembrar o Jean Charles, é claro."

No campo, um outdoor era colado durante a tarde, estampando uma foto de Jean Charles com os dizeres: "A violência interrompeu os seus sonhos, mas não interrompeu sua história". Fiscalizando o serviço, um funcionário da prefeitura relembrava o rapaz. "Era um menino tão bonzinho, tão trabalhador, e foi morrer daquele jeito", lamentou.

A estudante Stephanie Pires, 22, bastante próxima de Jean Charles, conta que, desde quando a proposta de um filme sobre a vida do eletricista foi anunciado, há dois anos, o assunto sempre voltava à tona na cidade. "Ele era conhecido na região. Era humilde e simpático o tempo todo", relembra.

Alex de Menezes, primo dele, concorda com a ideia de "festa" que regiu a exibição. "Faz alguns anos, a gente estava aqui por causa da tristeza. Agora é alegria, porque estamos prestando essa homenagem pra ele", diz. Alex - que morou com Jean Charles em Londres - é interpretado no filme pelo ator Luiz Miranda. O personagem-título ganha cara, voz e trejeitos de Selton Mello (em cartaz nos cinemas com a comédia "A Mulher Invisível")

A dupla esteve presente na exibição, acompanhada por Henrique Goldman e pelo roteirista Marcelo Starobinas. "Quando recebi o projeto, senti ser uma coisa que precisava ser feita. Entendi como sendo uma missão a ser cumprida", define Goldman, olhos brilhando, sorriso afetuoso no rosto. Assim como seu protagonista, ele e Starobinas saíram do Brasil para morar em Londres. "A trajetória dele é muito semelhante à nossa. Contar sua história gera grande identificação e retrata os caminhos de muitos brasileiros que tentam a vida fora do país."

Starobinas, jornalista por formação e profissão, sentiu-se fazendo "uma grande reportagem" ao se envolver no roteiro de "Jean Charles". "Fiz uma verdadeira investigação e colhi o máximo de informações possíveis. Depois, foi preciso acrescentar psicologia ao roteiro, e aí entrou o trabalho de ficção", conta.

Ficção esta que gerou conflitos entre a equipe de produção e os familiares de Jean Charles de Menezes. "Eles queriam colocar no filme uma cena que representava a versão oficial da polícia de Londres para a morte do Jean. Iam eternizar aquela farsa!", protesta Alex, o primo, que diz ter pedido aos realizadores para retirar a tal cena. Segundo ele, a solicitação foi atendida quatro meses depois. Goldman e Starobinas confirmam desentendimentos, mas garantem que cada passo do projeto foi discutido com a família. "Falar de algo tão recente e traumático é difícil para nós e para eles", diz o diretor. "Mas, na verdade, foi um trabalho de total colaboração entre a família e a gente."

Na última segunda-feira, em Belo Horizonte, Goldman recebeu a benção que almejava: exibiu o filme, em sessão particular, para Maria Otoni de Menezes, mãe de Jean. "Ela gostou e se emocionou. Só de saber isso, me sinto vitorioso."

* Reportagem integral da versão publicada no jornal O TEMPO em 20.6.2009

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