sábado, 6 de fevereiro de 2010
Cao Guimarães
por Marcelo Miranda
O circuito comercial de cinema tem dessas distorções. Um cineasta como Cao Guimarães, que soma cinco longas-metragens e "uns 20 curtas", segundo o próprio, tem visibilidade zero entre o público não frequentador de festivais. Dono de estilo único, expressivo, desafiador, sem se enquadrar em gêneros nem formatos, o mineiro Cao é mais conhecido pelo nome do que pela obra. Muita gente já ouviu falar dele, mas pouquíssimos assistiram a seus filmes.
Isso está para mudar - só um tanto, mas já é um começo. "A Alma do Osso" (2004), terceiro longa de Cao, vai ser lançado em salas de cinema de, no mínimo, sete capitais brasileiras, a partir de março. O filme teve pré-estreia na 13ª Mostra de Tiradentes, seis anos depois de ter sido feito. "Foi muito interessante voltar a ele tanto tempo depois", comenta o diretor. Satisfeito com a forma como "A Alma do Osso" se apresentou, Cao apenas fez pequenas intervenções nas cores do filme, inserindo um tom "mercuro cromo" (como ele define) na fotografia.
Quase simultaneamente, a distribuidora Videofilmes vai disponibilizar em DVD o segundo longa de Cao, "Rua de Mão Dupla" (2004). Considerando que "Andarilho" (2007) teve breve passagem no circuito e já existe em DVD pela Lume, são três dos cinco principais trabalhos do diretor possíveis de serem assistidos. Para um realizador acostumado a ter espectadores somente em eventos específicos (Cao levou cada longa a aproximadamente 15 festivais mundo afora), o próprio cineasta se vê diante de um universo novo.
"Meus filmes são um pouco mais herméticos, é verdade, mas me cansa ficar exibindo só para cineastas, artistas plásticos e gente de festival", assume Cao. "Quero saber como bate em outros olhares. Sempre tive vontade disso acontecer, mas o nosso circuito é muito careta e me dá preguiça correr atrás".
É notória a "preguiça" de Cao com as salas exibidoras. Deve-se ao desânimo que ele sente em relação à uniformização na distribuição. "É um circuito direcionado ao lucro. Ninguém vai passar um filme por causa de algum aspecto humanista, mas porque pode dar dinheiro. Quem tem sala de cinema, com raríssimas exceções, quer isso: ganhar muito dinheiro". Para Cao, as salas de shopping refletem o aspecto global da questão. "Não existe personalidade que distingue uma sala da outra. Os filmes são os mesmos, até o saco de pipoca é o mesmo! Se for para fazer assim, eu prefiro ir fabricar pão em série e escala industrial".
Aos 45 anos, Cao tem pouco mais de uma década no cinema. Seu primeiro trabalho, o curta "Otto, Eu Sou um Outro", é de 1998. Antes, Cao era ligado unicamente às artes plásticas - em especial a trabalhos de fotografia, desenvolvidos no período em que morou em Londres, entre 1996 e 1999.
Sempre que se assiste a um filme de Cao Guimarães, a dúvida é imediata: documentário ou ficção? Ainda que seja vinculado ao primeiro, o cineasta nega quaisquer rótulos. “Essas relações não existem mais. Como definir o aspecto real do ficcional?”, questiona. A miscelânea é potencializada pela forma como Cao mostra as figuras que escolhe registrar. Em “A Alma do Osso”, o ermitão Dominguinhos é mostrado nos seus afazeres cotidianos, mas a presença da câmera é uma evidência dos limites do que seja, de fato, o dia a dia daquele homem.
“Andarilho” tem uma das maiores performances do cinema brasileiro recente num dos entrevistados de Cao, espécie de “diabo loiro” das estradas. “É um personagem atuando no papel de si próprio”, diz o diretor. “A ficção, por natureza, é um documentário: ontologicamente, a câmera sempre filma a realidade que se passa diante dela. No caso de um trabalho dito ficcional, está sendo documentado todo aquele processo, que envolve atores, roteiristas e técnicos”. O cineasta defende a multiplicidade do cinema como criação artística. “Separar gêneros cria uma hierarquia muito chata e a ideia de que um pode ser melhor que o outro”.
Novos projetos
Cao Guimarães tem um projeto com o pernambucano Marcelo Gomes (de “Cinema, Aspirinas e Urubus”) de adaptar o conto “O Homem da Multidão”, do escritor norte-americano Edgar Allan Poe. O roteiro está pronto, mas bate sempre “na trave”, segundo o mineiro. “Fomos finalistas num concurso em Sundance (EUA) por três vezes, ficamos em quarto lugar no edital do Filme em Minas que aprovou três propostas...”, enumera. E ironiza, aos risos: “Deus deve estar me protegendo de trabalhar num projeto caracterizado como ficção e com grandes equipes”.
Enquanto não vem “O Homem da Multidão” – que será o fecho de uma intitulada trilogia da solidão, constituída pelos já realizados “A Alma do Osso” e “Andarilho” –, Cao está embrenhado num trabalho sobre a obra do poeta curitibano Paulo Leminski (1944-1989). O projeto surgiu de um convite do Instituto Itaú Cultural, que convidou alguns cineastas para retratarem de maneiras bem particulares figuras de vários nichos da cultura brasileira.
“Eu avisei que não sei fazer biografia, e eles disseram que buscavam mesmo um olhar poético sobre o artista”, adianta Cao. Ele leu tudo de Leminski na preparação do filme e pretende dar corpo (em imagens e sons) ao complexo “Catatau”, lançado em 1975 e definido pelo curitibano como “prosa experimental”.
Cao comenta: “Nesse livro, o Leminski imagina (o filósofo) René Descartes vindo aos trópicos, na época da invasão holandesa do Maurício de Nassau. É um livro que tem o Descartes aparecendo com uma luneta e um cigarro de maconha na mão, sentado embaixo de uma árvore e enlouquecendo a mente cartesiana dele”. Quem deve surgir em cena reinterpretando a figura de Descartes é o ator baiano João Miguel. O título está definido: “Pororoca Leminski”. “O Paulo era, ele mesmo, uma pororoca mental”, reforça Cao.
A videoarte
Muito se mistura o cinema de Cao Guimarães com a videoarte mineira dos anos 80, especialmente às criações de Éder Santos. De gerações distintas, os dois sequer trabalharam juntos. “Passaram a nos vincular, mas nossos trabalhos não têm absolutamente relação alguma”, diz Cao. “O Éder é de uma fase ligada à linguagem da TV, do videoclipe, das imagens eletrônicas. Eu sou muito mais relacionado com as artes plásticas”.
O próprio Cao é, ele mesmo, vinculado a um “movimento” posterior: o coletivo de realizadores Teia, formado em Belo Horizonte em meados desta década. Com nomes como Helvécio Marins, Pablo Lobato e Marília Rocha, a Teia se assume diretamente influenciada por Cao, ainda que não busque fazer filmes como os dele.
O diálogo, porém, é tão intenso que Cao e Pablo fizeram juntos “Acidente”, filme de bastante sucesso em festivais brasileiros e internacionais. O Grivo, grupo responsável por todo o trabalho sonoro dos filmes de Cao, também é presente nas produções da Teia. As semelhanças e diferenças podem ser notadas em filmes como “Aboio” e “A Falta que me Faz”, de Marília Rocha, e no curta “Trecho”, de Helvécio e Clarissa Campolina.
*Originalmente publicado em O TEMPO no dia 29.1.2010
**Foto de André Fossati
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