terça-feira, 30 de novembro de 2010

Festival de Brasília: "Amor?", de João Jardim

por Marcelo Miranda

Logo de início, Lilia Cabral aparece falando sobre como passou a entender seu papel de mulher no mundo a partir do instante em que apanhou do marido. O incômodo é imediato e evidente, tanto quanto a atenção ao que Lilia narra. Essa era a ideia central na proposta de "Amor?", quarto longa-metragem com direção do carioca João Jardim. O filme compete no 43º Festival de Brasília e teve exibição na noite de domingo.

Foi o mais bem recebido pelo público até o momento. E, mesmo antes do último competidor (o pernambucano "Vigias", previsto para a noite de ontem), será difícil tirar de "Amor?" o troféu de júri popular. Não é por menos. Jardim realiza uma mistura de documentário e ficção a partir das histórias de pessoas cujos relacionamentos amorosos foram ou são caracterizados por tipos variados de violência física.

João Jardim convidou atores conhecidos da TV e do cinema - entre eles, Silvia Lourenço, Julia Lemmertz, Mariana Lima, Ângelo Antônio, Eduardo Moscovis, Fabíula Nascimento, Cláudio Jaborandy e a citada Lilia Cabral - para interpretarem os depoimentos de anônimos que não podiam ser identificados. "Pelo teor do que falam, dá para entender como seria impossível que eles mesmos se expusessem", disse o diretor. "Menos que estética ou linguagem, fiz o filme na intenção de atingir a plateia pelo teor das falas. Usar rostos reconhecidos ajuda a legitimar e dar peso ao que está sendo dito".

O artifício foi dar aos atores a transcrição das falas de seus personagens reais e permitir que eles recontassem os fatos em conversas diretas para a câmera. Ainda que semelhante, o procedimento se difere do utilizado por Eduardo Coutinho em "Jogo de Cena". "Fiz ‘Amor?’ como instrumento para falar do tema, que é a violência entre casais. Não me interessava discutir os limites entre o que é verdade e ficção, pois o Coutinho esgotou isso no filme dele", garantiu João Jardim.

Ninguém do elenco teve acesso às gravações originais. Para o diretor, era primordial que houvesse total liberdade na forma como as histórias seriam apresentadas. "Busquei fazer com que cada participante do elenco se apropriasse daquilo que ia contar como se fosse ele mesmo, em vez de falar de alguém de fora. Daí eu não ter informado a biografia dos entrevistados, no intuito de que os atores inserissem, de alguma forma, as suas próprias biografias no que era contado".

Como fica claro durante a projeção de "Amor?", os homens demonstram mais resistência a falar do assunto do que as mulheres. Isso resvala para as interpretações, nas quais vemos as atrizes aparentemente sentindo de fato o que narram, enquanto os atores, por vezes, mais recitam do que absorvem o teor dos relatos. Foi algo sentido por João Jardim desde a pesquisa. "Sempre havia uma resistência, uma barreira dos homens, na hora de repetir as falas originais. Era bem mais fácil ter resultado com as atrizes do que com os atores", explicou Jardim.

*Originalmente publicado em O TEMPO no dia 30.11.2010

**Confira transmissão da premiação do festival, ao vivo, a partir das 22h desta terça-feira, dia 30, no meu endereço no Twitter ou do Facebook.

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