domingo, 27 de fevereiro de 2011

O Oscar do drama



por Marcelo Miranda

Antes de qualquer coisa, é melhor os brasileiros sossegarem o facho quando forem assistir à entrega do Oscar 2011 logo mais. Apesar de boa parte da mídia e os próprios realizadores estarem forçando para que "Lixo Extraordinário", de Lucy Walker, seja considerado um filme brasileiro concorrente a melhor documentário, trata-se de uma ilusão.

É notoriamente uma produção inglesa, feita em parceria com o Brasil, que entrou menos com a concepção artística e muito mais com aparato técnico e de infraestrutura. Ou seja, tecnicamente, o filme é mais brasileiro que britânico; essencialmente, é um filme da Inglaterra - e serão ingleses que deverão efetivamente levar a estatueta para casa, caso o longa seja escolhido hoje.

Dito isso, o que mais interessa na cerimônia a ser realizada em Los Angeles, no teatro Kodak, pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood? A 83ª edição do prêmio repete o que foi retomado no ano passado e coloca dez títulos na principal disputa, a de melhor filme. A estratégia serve principalmente para tentar alavancar a audiência da transmissão da festa na TV - quanto mais filmes no mata-mata, mais gente para torcer por seus favoritos.

A maior quantidade de competidores tira bastante da "coerência" das indicações que sempre marcou os votantes da academia, mas ainda é possível puxar alguns fios. A considerarmos a lista dos dez melhores de 2010, segundo a entidade, o que mais lhe chamou a atenção foram dramas absolutamente humanos - há, por exemplo, pouquíssimos filmes de toada mais fantasiosa, casos apenas de "A Origem" e "Toy Story 3", ambos azarões absolutos. Os demais passeiam pelos mais variados tipos de dramas, abarcando uma radiografia humana de crises, dores, dúvidas, derrotas, angústias, redenções e derrocadas.

Da trajetória amargamente vitoriosa do criador do Facebook em "A Rede Social" à melancólica saga de vingança e morte perpetrada por uma garotinha em "Bravura Indômita"; de mais uma garota em busca de algo - no caso, o pai - em "Inverno da Alma" a uma outra busca paterna, menos trágica, em "Minhas Mães e Meu Pai"; do mergulho no inferno das drogas que empaca a glória em "O Vencedor" até a superação de uma deficiência física em prol da nação mostrada em "O Discurso do Rei"; da solidão e do sacrifício ante a dor de "127 Horas" à jovem travada que luta contra as próprias barreiras psicológicas em "Cisne Negro".

Um outro elemento a ligar os dez filmes de alguma forma é que todos são sucessos de bilheteria nos EUA. Alguns são realmente campeões, justamente "Toy Story 3", com saldo de US$ 413 milhões, e "A Origem", com US$ 293 milhões. Outros são autênticos fenômenos, que, de custo baixo, funcionaram menos no marketing do que no boca a boca, casos de "Bravura Indômita" (US$ 164 milhões e ainda em cartaz), "O Discurso do Rei" (US$ 104 milhões, ainda em cartaz), "A Rede Social" (US$ 97 milhões) e "O Vencedor" (US$ 88 milhões).

A situação, portanto, é totalmente diferente se comparada ao ano passado, quando dois filmes opostos em quase tudo polarizaram o Oscar. De um lado, havia a megaprodução "Avatar", maior bilheteria da história do cinema; de outro, o independente "Guerra ao Terror", fracasso retumbante no contato com o público - e que acabou saindo glorificado da cerimônia, premiado em seis categorias, incluindo melhor filme, direção e roteiro original.

Apesar de "O Discurso do Rei" despontar como favoritíssimo hoje à noite - muito por conta de diversos outros prêmios vencidos pelo filme de Tom Hooper nas últimas semanas -, sempre há possibilidades de surpresa. Seus maiores adversários são "A Rede Social", também bastante premiado recentemente, incluindo o Globo de Ouro; "Cisne Negro", carregado em grande popularidade; e "Bravura Indômita", que, além de agradar a boa parte dos espectadores, tem colhido grande quantidade de críticas positivas. A categoria de direção, com cinco indicados, pode resolver ou reforçar escolhas da academia. Os votantes podem dar troféus alternados, por exemplo, a "O Discurso do Rei" e "A Rede Social".

Na disputa de ator e atriz, a barbada é quase sempre mais certa. Neste ano, só boas surpresas tiram o troféu de Natalie Portman, por "Cisne Negro", e de Colin Firth, que está em "O Discurso do Rei". O inglês, que em 2010 foi indicado pelo papel de um professor gay em "Direito de Amar", volta a disputar o prêmio com Jeff Bridges ("Bravura Indômita"), que o derrotou na interpretação de um cantor country em "Coração Louco".

Já Portman está num momento ideal de ser agraciada com o Oscar: jovem, talentosa, bonita, esforçada - ou seja, o típico exemplo de estrela que agrada a academia. Seu papel em "Cisne Negro" é uma semiunanimidade, muito maior do que o filme em si.

Nos coadjuvantes, Christian Bale está no topo das apostas com o boxeador em crise de "O Vencedor". O drama de David O. Russell compete com duas coadjuvantes (Melissa Leo e Amy Adams), que podem perder para Hailee Steinfeld ("Bravura Indômita").

Reflexões
Não são apenas os vários prêmios agraciados anteriormente a "O Discurso do Rei" que o credenciam como o maior favorito ao Oscar de melhor filme hoje à noite. Do alto de suas 12 indicações, o longa-metragem de Tom Hooper pode ser uma espécie de alívio diante da desilusão que se abateu na indústria no ano passado com a derrota de "Avatar".

Numa avaliação um pouco mais sociológica, a história de superação narrada no filme pode representar, também, um olhar mais positivo da academia para o cinema e para o mundo.

Faz algum sentido se tirarmos de exemplo a alternância dos vencedores nos últimos anos. Em 2010, "Guerra ao Terror" mostrou um personagem viciado em desarmar bombas, que abria mão de estar com a esposa e com o filho para ir ao front de batalha – visão nada utópica da constituição familiar.

Em 2009, "Quem Quer Ser um Milionário?" partia da pobreza indiana, com seus esgotos a céu aberto (e garotos banhados em fezes), para a vitória num jogo de TV e a dança redentora que unia a todos – otimismo em alta.

Um ano antes, "Onde os Fracos não Têm Vez", dos mesmos irmãos Coen que neste ano disputam com "Bravura Indômita", apresentava o mundo brutal do interior norte-americano, marcado pela desilusão e niilismo surgidos a partir de uma mala de dinheiro.

Nesse vai e vém, estaria na hora de algo mais positivo. "O Discurso do Rei" se encaixa à perfeição, tanto mais por ser uma produção britânica. Afinal, como se sabe, sempre soa simpático por parte da academia premiar trabalhos da Inglaterra, mais ainda se são filmes com olhar carinhoso para a Coroa – vide "A Rainha", concorrente forte em 2007 e que deu prêmio de atriz a Helen Mirren, interpretando a monarca Elizabeth II. Curiosamente, "O Discurso do Rei" trata da ascensão de George VI, pai de Elizabeth II.

O mais interessante será se a academia realmente surpreender e escolher outro para a categoria de melhor filme. Nessa hipótese, todas essas ponderações deverão ser reorganizadas.

*Originalmente publicado em O TEMPO no dia 27.2.2011

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