quinta-feira, 18 de junho de 2009

O diabo que nos carrega

por Marcelo Miranda

Tardiamente, assisti hoje a Constantine (2005), adaptação de Francis Lawrence para os excelentes quadrinhos do personagem da DC Comics. O filme é fraco, nem por ter aproveitado pouco as potencialidades da matéria-prima, mas porque Lawrence é um diretor limitado, que parece não saber dar ritmo ao que narra, nem cortar ou decupar as cenas de uma forma menos abrupta ou desconjuntada.

O melhor de ter assistido a Constantine, porém, foi ele ter me remetido a um dos trabalhos que mais admiro do Roman Polanski, e também um dos mais atacados dele: O Último Portal (1999). Lembro de tê-lo visto numa sessão com bastante gente, e quase todo mundo saiu odiando. Depois revi, e aconteceu a mesma coisa. A imprensa caiu matando com ferocidade. E o filme se tornou uma mancha amaldiçoada (o que, vamos admitir, faz um irônico sentido dentro do que Polanski propõe). Se não me engano, sequer saiu em DVD no Brasil, ainda que exista em VHS.


Como memória puxa memória, ao pensar em O Último Portal lembrei de um dos poucos artigos que o defenderam na imprensa brasileira. Foi do historiador da arte Jorge Coli, que, em seu valiosíssimo espaço semanal no caderno dominical "Mais!", da Folha de S.Paulo, refletiu sobre o filme com toda a sensibilidade, respeito e acuidade que parecem ter faltado à maioria de quem se dispôs a escrever ou comentar o longa de Polanski.

Uma pesquisa no arquivo da Folha, e eis que ressurgem as palavras de Coli. São breves, mas pontualmente marcantes. Vale a reprodução. O artigo foi publicado no dia 21 de maio de 2000.

O Último Portal, por Jorge Coli

Cão - "Polanski bate com a cabeça na porta - seu último filme é um fracasso integral." O crítico do jornal francês "Libération" não vai por meios caminhos. O diretor disse, uma vez, que os críticos gostavam sempre muito do seu penúltimo filme. Isso nem mesmo é mais verdade. O que fica, em nossas memórias, de um filme de Polanski? Certamente não a história: lembramo-nos do assunto principal, mas quem se arriscaria a contar a trama, nas suas etapas, de "O Inquilino" ou de "Chinatown"? Também não são tanto as imagens, em sua discrição nebulosa, que permanecem. Fica um clima, uma atmosfera deliquescente, indefinível, um pouco zonza e perversa.

"O Último Portal" faz cruzar romance gótico e "roman noir": dois gêneros mais do espaço do que do tempo, cujas afinidades se encontram no vaguear compassado, na sequência de lugares insólitos, na busca não muito clara por um "macguffin" incógnito. Isso corresponde ao espírito que preside seus filmes, desde os primeiros, desde o curta "Dois Homens e um Armário", desde "A Faca na Água" ou "Repulsion".

O diabo de Polanski não possui as seduções que ele imagina: a natureza de sua criação, ao mesmo tempo irônica e meditativa, parece mergulhar cada vez mais em si mesma. Por essa mesma razão, perda em público e crítica não quer dizer perda em poesia. É provável que "O Último Portal" tenha o destino dos penúltimos.

Cão bis - O diabo não é para qualquer um. Johnny Depp, ou melhor, seu personagem Dean Russo, é o eleito em "O Último Portal". Trata-se de um jansenismo às avessas, em que, marcado pela graça ou, antes, pela "desgraça", o personagem descobre que, dentro do labirinto onde se meteu, era ele próprio o ponto de chegada.


7 comentários:

Murilo disse...

Acho que um dos únicos Polanski que ainda não vi, apesar de tê-lo baixado mas não assistido pela cópia de baixa qualidade. Mas outro dos filmes do polaco que não vi ser muito comentado é o "Quê?" (1972), com o Marcelo Mastroianni espetacularmente caricato e aquele doce da Sydne Rome. O filme faz jus ao título, é uma fábula tão nonsense e irregular quanto deliciosa de assistir. Parece como se os irmãos Coen tivessem ido ainda mais longe com um Lebowski da vida, com a diferença que Polanski veio primeiro, hehehe. Escrevi sobre ele em meu blog, caso interessar:

http://stateofkubrick.blogspot.com/2009/06/que-polanski.html

Anônimo disse...

Polanski é um dos meus diretores prediletos desde sempre. Gosto de todos seus filmes, inclusive dos mal falados PIRATAS, QUÊ?, A MORTE E A DONZELA e O ÚLTIMO PORTAL.

Vlademir disse...

Se não me engano o Reichenbach também defendeu esse filme na época. eu só o assisti no SBT enquanto estava na casa de uns amigos, sem prestar atenção total, mas ruim como diziam, não é não. Mas o que eu não tenho paciência do Polanski é o Piratas, de resto sempre tem algo que vale a pena em seus filmes.

André Setaro disse...

Gostei de 'O último portal', de Polanski. Na época me lembro que a crítica, de um modo geral, não gostou, exceção se faça ao Comodoro (que o elogiou com todas as letras) e Jorge Coli, homem erudito e antenado.

Marcelo Miranda disse...

Bem lembrado, Setaro e Vlademir: Carlão elogiou O ÚLTIMO PORTAL! Mais um pra lista. E fico feliz de vocês também gostarem do filme, Setaro e Leandro. Vamos tirá-lo do limbo, quem sabe. Forte abraço!

Eduardo Valente disse...

epa! mesmo que com ressalvas, eu tb curti na época (e, ah, como eu escrevia diferente 9 anos atrás!!): http://www.contracampo.com.br/criticas/oultimoportal.htm

Filmes Polvo disse...

Valentón, eu encontrei este texto seu no dia seguinte a este post e gostei bastante. Uma boa defesa, mesmo com as ressalvas!