sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Andrea Ormond



por Marcelo Miranda

Aproveitando que ela deixou um comentário no post abaixo, reproduzo a seguir a entrevista que fiz com a pesquisadora Andrea Ormond. Ela mantém desde 2005 o blog Estranho Encontro, acesso obrigatório a quem deseja conhecer mais a fundo o cinema brasileiro nas suas mais variadas (e, muitas vezes, pouco reconhecidas) vertentes.

Como e em que circunstâncias nasceu o blog Estranho Encontro?
Quando paro para pensar, vejo que o Estranho Encontro nasceu lá pelo início dos anos 90. Nessa época, era praticamente impossível ter contato com o chamado cinema brasileiro não oficial. Não havia Canal Brasil, YouTube, redes P2P [de compartilhamento]. Era claustrofóbico. Na minha geração, muita coisa não foi questionada, até porque era impossível ter acesso às inúmeras vertentes da Boca do Lixo, por exemplo. Aí, quem se interessava por filmes brasileiros virava uma espécie de marginal, catando fita velha em locadora. Eu alugava os filmes e fazia fichinhas com comentários. O blog propriamente dito nasceu em 2005. Baseada em anos de pesquisa, havia escrito alguns pontos de vista críticos e resolvi disponibilizá-los. Fiz uma pequena divulgação e o número de visitas começou a crescer. Foi tomando uma proporção cada vez maior, pelo interesse, respeito e carinho dos leitores.

Antes de escrever no blog, você sentia falta de um pensamento crítico sobre o cinema brasileiro na Internet?
Como falei antes, era realmente claustrofóbico. E não se engane: ainda é. Não só na Internet, mas em quase tudo que é dito sobre a filmografia brasileira na imprensa. Evidente que nomes de um passado distante, como Rubem Biáfora e Salvyano Cavalcanti de Paiva, sabiam separar o joio do trigo e não apelavam para o óbvio, para os clichês. Mas, ainda assim, o fato é que, no mais das vezes, a crítica sempre tratou o cinema nacional como algo "exótico", exterior a ela. É quase esquizofrênico. Dessa forma, ficou muito fácil catalogar tudo sob a chancela do sexo, naquele velho discurso generalizante e ignorante. O erotismo comercial não foi o todo, mas uma vertente utilizada para conquistar público. E mesmo o sexo às vezes foi usado de maneira sublime, vide o Walter Hugo Khouri e alguns filmes do Carlos Reichenbach, ou mesmo do Jean Garrett. Para existir pensamento crítico, é preciso um horizonte mais amplo, entender o cinema nacional como uma coleção de momentos, de nomes, de possibilidades.

O que mais diferencia o Estranho Encontro é a atenção a filmes que tradicionalmente são deixados de lado no cinema brasileiro do passado, como pornochanchadas e fitas de gênero (policial, terror, aventura, comédia). A que se deve esse interesse pelo "extracampo" do nosso cinema?
Sempre me incomodou profundamente ver que apenas o cinemão oficial é tido por "pesquisável". O que não é cânone vira ridículo. Ora, impossível esquecer (para quem viu, pois muitos não veem e pensam que não existe) um filme como Ódio, dirigido pelo Carlo Mossy, um galã bobinho, que cometeu comédias esteticamente inferiores. Não se pode passar um rolo compressor sobre as trajetórias de tudo e de todos sem entender que existem idiossincrasias, momentos e detalhes em filmes que são incríveis. Outro exemplo é o da Marlene, a eterna rival da Emilinha Borba. Em 1982, ela protagoniza uma cena lésbica interessantíssima no Profissão Mulher, roteiro da escritora Márcia Denser. Como isso pode não ser pesquisado na memória antropológica brasileira?

O seu diretor predileto é Walter Hugo Khouri, que é pouco estudado na nossa cinematografia. O que lhe causa admiração no cinema dele?
A admiração pelo trabalho do Khouri se dá sob dois ângulos. Por um lado, o domínio da técnica, que não se resumiu à direção, mas se estendeu também ao roteiro, ao olhar da câmera, à erudição humanista. A maioria desses pseudo-intelectuais, cineastas ou não, que já criticaram iconoclasticamente o cinema do Khouri, o faz simplesmente por não entender o que existe ali por trás. Sim, estou chamando parte da crítica brasileira de burra. Burra e provinciana, porque acha que filme brasileiro tem que ter cangaceiro e saci-pererê. Sempre foi assim. Por outro lado, também me chama atenção, no Khouri, a constância ao longo de mais de 40 anos, filmando, apesar de todo o tipo de dificuldades impostas pela "intelligentsia". Analisando a firmeza de propósitos, o sentido de sua obra, chega a ser fácil entender que tenha concretizado tantos filmes em um ambiente totalmente adverso. Khouri tinha o que dizer, coisa rara.

E quais seus filmes preferidos dele?
Sem ordem de preferência, O Anjo da Noite, As Deusas, As Filhas do Fogo, Corpo Ardente, Noite Vazia e Palácio dos Anjos.

Certa vez você escreveu que o cinema paulista, principalmente os filmes feitos na Boca do Lixo, conta uma história do cinema bem diferente da que conhecemos no país. Que história seria essa?
O melhor momento da história do cinema brasileiro foi na Boca. É preciso avisar isso para a intelectualidade carioca, que nunca enxergou São Paulo como centro do cinema no Brasil. Lá tivemos a história de um cinema autossustentável, prolífico, uma indústria que apareceu onde ninguém esperava que surgisse algo de bom. Foi da Boca, por exemplo, que saiu a nossa Palma de Ouro em Cannes, O Pagador de Promessas, do Anselmo Duarte. Quer algo mais higienizado do que uma Palma de Ouro? Houve pornografia, sim, na Boca. Nos anos 80, ela foi levada ao extremo e destruiu a indústria que ali existia. Mas não houve apenas isso. Compreender a grandeza, diversidade e qualidade do cinema paulista é a chave que nos tira de um pensamento vitimizante e atrasado.

O cinema brasileiro pós-Retomada vive correndo atrás de público, enquanto, até os anos 80, era o público que vivia atrás do cinema brasileiro. O que mudou entre uma época e outra?
Fatores extra-cinematográficos têm pesado bastante. Há tempos atrás cunhei no blog a expressão "sociochanchada", que engloba, a meu ver, um espectro amplo de filmes. É a tal "mensagem social", leviana (porque força a barra de maneira tosca) e previsível (o roteiro obedece a um sentido ideológico politicamente correto, nunca artístico e criativo). Para piorar, não há risco para os produtores da forma que havia, digamos, nos anos 70. Eles não arcam dos próprios bolsos com o fracasso ou sucesso. Ganha-se muito dinheiro público, grande parte das vezes sem a transparência necessária na demonstração dos resultados. Isso, aliás, é tema para o Judiciário resolver.

O preço do ingresso pesa?
Persiste o fator econômico-financeiro, que está nos preços elevadíssimos das sessões de cinema. O assunto não deve ser esquecido, pois, se o filme fosse ruim, mas barato de ver, garanto que haveria margem maior para o acesso ao cinema. Fenômenos esporádicos como o Cidade de Deus ou Tropa de Elite não conseguem estabilizar a oferta e a demanda, nem manter um mercado sólido, por conta dessas variáveis todas. É necessária uma volta ao cinema popular brasileiro.

Como você caracteriza o cinema brasileiro de hoje?
Sobrevive de fenômenos esporádicos e incerteza de público. Os estúdios estrangeiros engoliram várias fatias do mercado interno, até porque matou-se um mecanismo de produção interessantíssimo como o da Boca. Enquanto for extraordinário fazer cinema, enquanto for rocambolesco, isso se perpetuará.

O cinema brasileiro de hoje te interessa? Se sim, o que, dentro dele?
Me interessa, sem dúvidas. O fato de eu remexer o passado tem um sentido, pragmaticamente falando: não existe presente, nem futuro, sem um passado. Existe um edifício muito maior, muito mais sólido, que diz a que veio o cinema brasileiro. Vibro com o Cheiro do Ralo, os filmes do Beto Brant, do Cláudio Assis, vejo-os como uma ventania de vida. Ainda me intriga, por outro lado, perceber que algumas coisas interessantes, como séries dirigidas por cineastas, fiquem restritas à TV a cabo. Aquelas séries da HBO são um exemplo disso. Por acreditar que a produção audiovisual brasileira sempre vale a pena é que eu escrevo.

* Entrevista originalmente publicada no jornal O Tempo, em 31.5.2009

** Foto: Maíra Coelho/JB

3 comentários:

Adilson Marcelino disse...

Marcelo,
Adorei reler essa entrevista.
A Andrea realmente sabe do que está falando.
Abs

Andrea Ormond disse...

Adilson e Marcelo, obrigada. Adorei a entrevista, o papo flui naturalmente, super bem. Aliás, méritos do Marcelo tb. Beijos!

Anônimo disse...

Andrea, sempre maravilhosa. Seus textos são muito bons e ela garimpa muito bem a filmografia brasileira.

Márcio/MG