Às vezes desanima. Assisti no fim de semana a Atividade Paranormal, filme de terror de baixíssimo orçamento que virou fenômeno de bilheteria nos EUA. Bastante agradado com o resultado, chego em casa e busco alguns textos escritos sobre o filme, para saber como a crítica o recebeu. O que vem é um manancial de besteiras, quase todas focadas na "imagem ruim", na suposta "estética YouTube" e em comparações com A Bruxa de Blair, outro fenômeno, este dos anos 90.
De instigante, reflexivo ou minimamente sensível ao fato de Atividade Paranormal ser um objeto audiovisual, absolutamente nada escrito. Boa parte destes textos olha o filme por cima, tentando aplicar-lhe lições de "bom comportamento", como se sua existência fosse um atentado a um gosto estético pré-fabricado e passível de ser seguido a todo momento. Mais que isso: talvez por ter se transformado no tal fenômeno, ou pelas imagens captadas em vídeo de baixa definição, ou mesmo pela enésima utilização do recurso ao falso documentário, perde-se totalmente a compostura em olhar para o filme como algo minimamente relevante. Digo mais: perde-se o respeito pelo filme. É um tipo de crítica viciada, que "passa" pelo filme quase por obrigação e não tem nenhuma preocupação em pensá-lo, para o bem ou para o mal (não é preciso gostar dele - aliás, de filme algum. Mas é preciso enxergá-lo, de alguma forma, e demonstrar essa visão).
Mas eis que (de novo) Jorge Coli, historiador da arte e colunista do caderno Mais!, da Folha de S.Paulo, reconhece num filme dito "menor" algo que o instiga, transformando isso em palavras de muito sentido e sensibilidade. Como é característico de Coli no espaço onde escreve no jornal, o texto é curto, objetivo, coeso e pensa a arte num sentido amplo, sem jamais se colocar acima dela. O que torna Coli admirável - não apenas aqui, mas no geral - é a capacidade de se chocar com o objeto em questão, ser estimulado por ele e, dali, compartilhar as impressões com total desprendimento.
O texto de Coli sobre Atividade Paranormal saiu na semana passada. Reproduzo abaixo, na íntegra.
VELHOS MEDOS
por Jorge Coli
A volta de "A Bruxa de Blair" dez anos depois. É assim que "Atividade Paranormal", primeiro filme de Oren Peli, tem sido tratado nas críticas e comentários. O paralelo não é falso: baixo orçamento, tom de cinema "vérité", tema sobrenatural e aterrador, êxito enorme. Antes de "A Bruxa de Blair", poucos filmes tentaram, esporádicos, um jogo parecido; salvo erro, apenas três, e admiráveis: "Os Mil Olhos do Doutor Mabuse", de Fritz Lang, "A Tortura do Medo", de Michael Powell (ambos de 1960) e "Cannibal Holocaust", de Ruggero Deodato (1980).
As coisas mudaram, porém, nesta década. Câmeras de vídeo, primeiro em fita, depois digitais, oferecem liberdade e banalização que, naqueles velhos tempos, eram impensáveis. Ficaram menores e cômodas, com recursos complexos e captação mais fina, mesmo no escuro. Filmagens domésticas acostumaram os olhos com um não estilo que terminou por virar um, cheio de solavancos e acidentes. Os reality shows propagaram o voyeurismo. O YouTube demonstrou que o sucesso brota de bobagens inesperadas, divertidas, e não de sapientes imagens elaboradas.
Novas lentes
Em "Atividade Paranormal", a força provém da maneira desprevenida com que tudo é filmado pelos próprios personagens. Nada de explorações expressionistas, como em "A Bruxa de Blair".
Ao contrário, os momentos tensos se acentuam quando a câmera é abandonada a si mesma e registra, incansável, imóvel, a partir de um tripé. O tempo é controlado pelo marcador, à direita da tela, que acelera ou se acalma. Sons, situados fora do que é visível, acrescentam à verossimilhança sobrenatural.
O diretor sabe que nenhum fantasma é mais aterrador do que o imaginário. Assinala a presença sobrenatural por indícios apenas. Tudo se passa numa casa suburbana da Califórnia, moderna, bem iluminada, e não tem qualquer pingo de gótico.
Os atores que encarnam o casal Katie e Micah são jovens, desconhecidos, simpáticos e sem particular glamour: correspondem à verdade do cenário e dos personagens. Progressão paulatina do sobrenatural, minimalista por vezes: basta uma porta que se movimenta um pouquinho. Nenhuma cena é centrada na histeria. Ao contrário, Katie, sonambúlica, às vezes é tomada por imobilismo inquietante.
Passado
Na casa americana, num mundo que é o da banalidade contemporânea, "Atividade Paranormal" retoma inquietações antigas. Assim, o privilégio que as câmeras possuem de registrar o sobrenatural ocorreu muito cedo, com a fotografia, no século 19, captando ectoplasmas em sessões espíritas.
Desde a invenção dos gravadores de fita que muita gente partiu à caça de sons vindos do além. O tema das casas assombradas é velho como o romantismo, assim como o das mulheres possuídas por demônios ou espíritos.
A estrutura e o andamento da história são bem parecidos com os do conto "O Horla", obra-prima que Guy de Maupassant editou em 1886: nele, o fantasma vampiro vinha de São Paulo, no Brasil. O conto de Maupassant marcou a literatura de Lovecraft, gênio do terror indizível e invisível. "Atividade Paranormal" pertence a essa grande linhagem.
Rabicó
Durante dois anos, o filme de Oren Peli circulou em festivais e universidades americanas, antes de ser descoberto por distribuidores espertos. Ao ser enviado para as grandes salas, o final mudou para um desfecho mais explícito e bombástico, ao que parece, por sugestão de [Steven] Spielberg. A primeira versão, com um longo e desesperante passar do tempo, é muito melhor.
4 comentários:
Eu também fiquei frustrado quando a primeira crítica que eu li sobre o filme quando cheguei em casa foi aquela do Globo, do bonequinho dormindo e falando mal da imagem. Valeu pelo texto do Coli disponibilizado!
Ainda bem que não foi só eu que achei "A primeira versão, com um longo e desesperante passar do tempo, muito melhor".
Muito legal o Coli tem lembrado de "O Horla". Por sinal, não consegui ver a versão cinematográfica do conto, ainda.
Li "O Horla" hoje, Marcelo. Não conhecia o conto e achei fabuloso. Agora vou caçar o filme, que tem o querido Vincent Price... Abraços!
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