domingo, 6 de dezembro de 2009

Manoel de Oliveira, (quase) 101

por Marcelo Miranda

Às vésperas de completar 101 anos (o aniversário é no próximo dia 11), o português Manoel de Oliveira esteve em Belo Horizonte há alguns dias. Veio receber o título de Dr. Honoris Causa da UFMG. Os polvos estiveram em massa para acompanhar a passagem do verdadeiro bom velhinho. Eu, em particular, estive também presente como repórter, o que me fez gerar a matéria reproduzida abaixo:



MANOEL, O GÊNIO LÉPIDO

Sob o olhar desconfiado de um segurança, o repórter e o fotógrafo do Magazine [caderno de cultura do jornal mineiro O Tempo] entram no camarim onde Manoel de Oliveira aguarda ser chamado ao palco. Num corredor meio escuro, o único facho de luz ilumina justamente o diretor, escondido perto da cortina. Trajando camisa amarela e com expressão de quem apenas espera seu nome ser anunciado ao microfone, Manoel é solícito ao ver aqueles dois jornalistas. Ao posar para fotografias, brinca: "Os espanhóis costumam perguntar: de pé, sentado ou deitado?". E sorri.

Assim, sempre lépido, que o cineasta português de quase 101 anos (a serem completados em 11 de dezembro) se apresentou à plateia que foi vê-lo e ouvi-lo no anfiteatro da reitoria da UFMG, na Pampulha. Ao entrar, foi aplaudido de pé. Gesticulou, quase constrangido, para que o público se sentasse. "Não sei por que as pessoas se levantaram. Talvez seja pela minha idade", brincou.

Manoel não é ingênuo. Sabe o fascínio e admiração que exerce em todos que tiveram contato com alguns de suas dezenas de filmes, numa obra ainda em andamento. O primeiro, o curta Douro, Faina Fluvial, data de 1931; o último, o longa Singularidades de uma Rapariga Loura, foi lançado este ano. E Manoel está em plena filmagem de mais um. Interrompeu o trabalho para vir a Belo Horizonte receber o título de Dr. Honoris Causa, atribuído a ele pela UFMG pela "contribuição relevante à educação, à ciência e à cultura", segundo palavras do reitor Ronaldo Tadeu Pena.

Antes de receber a comenda, Manoel de Oliveira participou da mesa redonda Palavra, Imagem, Utopia, composta pelo pesquisador Mateus Araújo e pelos professores César Guimarães e Aniello Avella. O encontro era parte do projeto Sentimentos do Mundo, coordenado pela professora Patrícia Kauark. Rodeado por esses intelectuais, Manoel manteve a pose educadamente irônica e debochada. Após ouvir de Mateus Araújo uma cuidadosa explanação sobre sua obra no cinema, o português disse: "Foi magnífico. E ainda me poupa de falar qualquer outra coisa". Novo sorriso.

Os inevitáveis comentários sobre a sua idade avançada receberam de Manoel retornos igualmente simpáticos: "Somos todos produtos da natureza. É ela quem manda, não nós". Demonstrando o costumeiro conhecimento profundo em cinema, literatura ("a expressão mais forte do ser humano", afirmou), teatro, filosofia e ciências, Manoel de Oliveira refletiu sobre uma série de aspectos da arte.

Perguntado de sua predileção por realizar filmes que dialogam com a obra de grandes escritores portugueses - Camilo Castelo Branco, Eça de Queiroz, Fernando Pessoa, padre Antônio Vieira -, o cineasta culpou o acaso. "É ele quem escolhe nossos caminhos", garantiu. "Nunca tive verdadeiramente a intenção de filmar esses autores. Hoje consigo perceber um tipo de ordenação".

A respeito da profundidade atingida por seus filmes - dos quais ao menos Amor de Perdição (1979), O Dia do Desespero (1992) e Vale Abraão (1993) são verdadeiros patrimônios artísticos -, Manoel diz que tudo tem seu lado artificial. "A vida nunca é representada nos filmes tal como é. O que se representa são as convenções que nos guiam na vida".

O português acredita que a linguagem do cinema deve à técnica as suas constantes mudanças, mas o primordial foi plantado ainda no começo do século XX. "Tivemos o realismo dos Lumiére, a fantasia de (George) Meliés e o cômico de Max Linder. O cinema não precisa mais do que essas três coisas".

Livro. Mostrando o ecletismo e ampla visão, Manoel de Oliveira, ao final de seu discurso de agradecimento ao título da Dr. Honoris Causa da UFMG, citou o diretor canadense David Cronenberg, autor de, entre outros, A Mosca (1986), Videodrome (1983) e os recentes Marcas da Violência (2005) e Senhores do Crime (2008). Disse Manoel: “Como já afirmou Cronenberg, todo homem é um cientista louco, e a vida é seu laboratório”.

Foi só uma das várias citações do cineasta ao longo da participação no evento realizado na reitoria da UFMG. Pensadores, filósofos e cineastas permeiam as falas do português, incluindo anedotas – como uma envolvendo o diretor franco-suíço Jean-Luc Godard e um “cão amarelo”.

Segundo Patrícia Kauark, será produzido um livro sobre Manoel de Oliveira a partir desta sua visita. Devem constar na publicação, a ser editada pela própria UFMG, textos sobre os filmes do diretor, ensaios, filmografia atualizada e a íntegra de seu discurso proferido na universidade.

Atualmente, apenas um título relevante sobre o cineasta circula no mercado editorial brasileiro. Manoel de Oliveira, da editora CosacNaify, foi publicado em outubro de 2005 – o que já o deixa defasado pelo menos na relação de filmes, bastante ampliada nos últimos cinco anos.

“Tá bom? Se tá bom pra você, pra mim tá melhor”, disse Manoel, ao final de uma resposta de um professor. Sim, Manoel, assim está ótimo.

*Matéria publicada na edição de 28.11.2009 do jornal O Tempo
**A foto acima é de Diogo Domingues, fornecida pela UFMG

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