domingo, 6 de dezembro de 2009

Tony Vieira: operário do cinema

por Marcelo Miranda

Servente da Companhia de Cimento Itaú em meados dos anos 1960, no município mineiro de Contagem, o jovem Mauri de Oliveira Queiroz - vindo fazia não tanto tempo da pequena Dores do Indaiá, na região Oeste de Minas Gerais, onde nascera em 1938 - sentiu-se atraído por um show de calouros produzido pela empresa. Era um dos maiores divertimentos dos moradores da cidade: ver e se esbaldar com os artistas que se arriscavam a subir no palco do Cine Itaú. Mauri foi um desses. Com instintiva veia artística, que já o permitira integrar um circo e ser locutor de parque de diversões, o rapaz começou a fazer teatro amador. Logo chamou atenção de gente que podia lhe dar oportunidades. Foi o caso de José Sebastião Carneiro Filho. O apresentador do show de calouros da Itaú levou Toninho (apelido de Mauri) para trabalhar na extinta TV Itacolomi. Nas pequenas participações de novela, novamente se destacou.

A convite do ator Moacir Franco, foi tentar a sorte em São Paulo. Na metrópole, atuou em mais novelas e alguns seriados e filmes. Sua ânsia criativa quadruplicou. Brotava ali a lenda de Tony Vieira, figura ímpar da cinematografia popular brasileira e atualmente deixado de lado pela suposta "intelligentsia" que domina o pensamento filmográfico no país. "A intelectualidade sempre teve medo dos autodidatas como Tony", afirma o pesquisador paulista Matheus Trunk.

É bastante provável o leitor nunca ter ouvido falar em Tony Vieira. Muito menos em filmes como Gringo, o Último Matador, Traídas pelo Desejo, A Filha do Padre ou Desejo Proibido. Esses títulos - e diversos outros com a assinatura de Tony - levaram centenas de pessoas aos cinemas, entre os anos de 1972 e 1988. "Os filmes dele eram destinados a um público masculino, heterossexual, católico e conservador das grandes e pequenas cidades. Era o povão", enumera Matheus.




Por ser vinculada às produções "pobres" da Boca do Lixo (região paulista de forte efervescência cinematográfica no período), a obra de Tony Vieira foi desaparecendo dos registros e, consequentemente, da memória coletiva. "Sei de pessoas que viam filmes do Tony no interior da Bahia", destaca Matheus Trunk. "Aqui em São Paulo conheço o seu Pedro, um senhor idoso, catador de lixo. É fã do Tony e tem todos os filmes dele".

A obra de Tony Vieira é composta de 32 longas-metragens, muitos deles de gênero policial ou faroeste. A maioria é caracterizada pelo baixíssimo orçamento, excesso de criatividade e acúmulo de funções, com Tony sendo diretor, ator, produtor, argumentista, montador e compositor de trilha sonora. Não por menos, ele próprio se intitulava um operário do cinema.Nunca é tarde para trazer de volta o que não deveria ter sumido.

Desde o dia 11 de novembro, o Centro Cultural de Contagem abre espaço para a exposição "Tony Vieira - Cineasta de Contagem". Está à mostra vasto acervo de fotos, cartazes, figurinos, objetos de cena e textos relativos à trajetória do cineasta. A iniciativa veio da prefeitura local, no intuito de revalorizar a imagem de Tony. "Ele foi um realizador apaixonante justamente por ser um apaixonado pelo cinema", comenta a historiadora Carolina Dellamore, membro da Diretoria de Memória e Patrimônio da Secretaria de Educação e Cultura de Contagem.

Carolina conta ter existido, até alguns anos atrás, dois rumores na cidade a respeito de Tony Vieira. Um era de que ele tinha sido responsável por atrair milhares de pessoas para assistir aos seus impactantes filmes nos cinemas; o outro dava conta de que ele fora apenas um realizador de fitas pornográficas e nem merecia ter o nome vinculado a Contagem. "Sempre ficávamos na dúvida: qual era, afinal, o verdadeiro Tony?", conta ela.

Munida do faro histórico e da empolgação do jornalista Hytagiba Carneiro - que atuou em vários filmes de Tony e foi o responsável por guardar todo o seu acervo, após a morte do diretor em 1990 -, a equipe de Carolina conseguiu reconstituir os caminhos do realizador, inclusive confirmando que dois de seus trabalhos (Traídas pelo Desejo e Os Depravados) tinham cenas filmadas em Contagem. "É também uma forma de nos enxergar através da obra dele", afirma Carolina.




Carreira
Tony Vieira pode ter feito carreira num espaço conhecido como Boca do Lixo, mas conseguiu do bom e do melhor durante os anos de ouro na trajetória de realizador de cinema. "Sua produtora, a MQ Filmes, era bem grande, e o assédio dele junto ao público feminino era muito forte", conta o pesquisador Matheus Trunk, editor da revista eletrônica Zingu!. "O Tony ganhou bastante dinheiro com cinema. Gostava de bons carros e roupas de marca. Era bastante vaidoso e torcedor fanático do Atlético-MG".

Para o jornalista Rodrigo Pereira, estudioso do faroeste brasileiro (o chamado "western feijoada"), Tony Vieira foi talvez a figura mais próxima de ser uma verdadeira estrela dentro da estrutura precária da Boca. "Ele se aproximou de um ‘star system hollywoodiano’ a partir de um tipo de personagem que se confundia com o ator", diz Rodrigo. "Tony dizia que sua maior referência era o Charles Bronson. Quando diz isso, ele fala do Bronson que usava o cinema para interpretar aquele sujeito de bigode e cara de mau".

Rodrigo ainda relembra o trio que quase sempre protagonizou os filmes de Tony: ele próprio, como a figura central; a atriz Claudette Joubert, como a mulher apanhada no fogo cruzado dos conflitos em cena e quem garantia o erotismo dos filmes; e o ator Heitor Gaiotti, o parceiro engraçadinho.
Hytagiba Carneiro, 80, relembra com carinho e saudosismo a amizade e o trabalho com Tony Vieira. "Quando jovens, nossa distração era ir ao cinema", diz ele.

A primeira parceria da dupla foi em As Amantes de um Canalha (1977), no qual Hytagiba encarnava um perigoso bandido. Seguiram-se diversas outras participações em filmes de Tony. "Estive na metade da obra dele, aparecendo com mais destaque em Desejos Sexuais de Elza (1982) e O Último Cão de Guerra (1980), quando fui protagonista".



Quando a Boca do Lixo entrou em decadência, por conta da ascensão das fitas pornográficas em meados dos anos 1980, Tony Vieira ainda tentou se adequar ao novo esquema. Fez alguns pornôs, mas isso não foi suficiente para sua ânsia criativa. Hipocondríaco e adoentado, decidiu retornar a Contagem. Morreu na cidade em 1990, aos 52 anos, vítima de câncer.

Pouco antes, delegou ao amigo Hytagiba Carneiro a responsabilidade sobre sua obra - incluindo as latas contendo os negativos dos filmes. Mal armazenados na casa de Hytagiba, provocaram problemas respiratórios no ator. Ele mesmo transferiu os filmes para a Casa de Cultura Nair Mendes Moreira, em Contagem. Também em condições inadequadas, de novo mudaram de endereço: atualmente, os filmes estão preservados no Centro de Referência Audiovisual (Crav), em Belo Horizonte. As películas estavam em processo de deterioração, mas existe um projeto de restauração sendo desenvolvido.

*Reportagem publicada na edição de 22.11.2009 do jornal O Tempo

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