por Marcelo Miranda
A Ursula postou abaixo algumas impressões sobre A Fita Branca, filme do Michael Haneke em cartaz por aí. Acho que não gosto tanto como ela gosta, mesmo que goste bastante. Mas, esquisitamente, o filme tem diminuído muito na minha memória. A cada vez que penso nele, sinto algo que não me pega, que me parece rarefeito demais e também oportunista em excesso. De qualquer forma, reproduzo aqui um pequeno texto que escrevi sobre A Fita Branca para o jornal "O Tempo", há quase duas semanas - e que já aponta alguns incômodos que tive desde então. Digamos que os incômodos aumentaram. A rever.
A nova violência de Haneke (publicado em 15.2.2010)
O crítico francês Michel Mourlet escreveu certa vez: "O cinema é a arte por eleição da violência, já que vem ao mundo nos gestos do homem, no momento em que a força acumulada extravasa, rompe os diques, impulsiona-se em jatos crescentes sobre seu obstáculo. Este momento, que as outras artes só podem sugerir ou simular, a câmera se apossa de forma natural".
Um filme como "A Fita Branca", em cartaz nos cinemas, serve de perfeita ilustração para o que Mourlet defende. Michael Haneke sempre foi uma cineasta para quem a violência é uma questão a ser refletida - ou, mais que isso, a representação da violência através da imagem captada por uma câmera.
"A Fita Branca" é visualmente menos explícito que trabalhos como "Violência Gratuita" e "Caché", do mesmo Haneke. Isso em nada significa que a problematização do ato violento tenha ficado de fora. O filme narra o sombrio conto de uma comunidade do interior alemão assolada por supostos acidentes que vêm perturbando a tranquilidade dos moradores. Estamos no começo do século XX, às vésperas da 1ª Guerra Mundial. Este dado não existe à toa, e toda a ambientação de "A Fita Branca" será devedora de seu momento histórico.
É neste ponto que o filme de Haneke se torna ambíguo. Por um lado, o discurso político do cineasta periga soar incomodamente ingênuo a partir da meia hora final: o particular que caracteriza o drama inicial se torna coletivo no desfecho, e as ações conjuntas de um grupo de pessoas aparentam "responder" ao futuro que estaria reservada à Alemanha nos anos seguintes. É um tipo de psicologismo mediúnico retroativo, em que se busca explicações da insanidade como se estivéssemos a testemunhar um experimento com ratos de laboratório induzidos a certos estímulos.
Por outro lado, a construção do filme como objeto de cinema parece estar menos preocupada com discursos do que em parecer perfeitamente cristalina, de arestas aparadas e com cada elemento no lugar mais correto possível- dos atores posicionados nos longos planos fixos à cenografia, da fotografia em preto e branco aos olhares atônitos dos atores. O mundo de "A Fita Branca", nesse sentido, é um mundo existente só dentro da imagem, sem compromissos naturalistas com o que possa estar ocorrendo fora dela. Quando se deixa levar por isso, o filme se torna grandioso.
Isso porque Haneke, com toda a controvérsia que o cerca, é, essencialmente, um diretor de horror. O que são, afinal, "A Professora de Piano", "Violência Gratuita", "Tempos de Lobo"? Em "A Fita Branca", ele assume de vez essa faceta e se insere numa chave bastante devedora ao suspense. Sempre sendo original, Haneke emula de "A Vila" (M. Night Shyamalan) a "Dogville" (Lars Von Trier), de "O Inquilino" (Roman Polanski) a "A Cidade dos Amaldiçoados" (John Carpenter), todos filmes que lidaram com a claustrofobia de um espaço de onde a violência surge das menores coisas. Mas é, sempre, Michael Haneke, esse mago austríaco-alemão ainda passível de incômodos.
A Ursula postou abaixo algumas impressões sobre A Fita Branca, filme do Michael Haneke em cartaz por aí. Acho que não gosto tanto como ela gosta, mesmo que goste bastante. Mas, esquisitamente, o filme tem diminuído muito na minha memória. A cada vez que penso nele, sinto algo que não me pega, que me parece rarefeito demais e também oportunista em excesso. De qualquer forma, reproduzo aqui um pequeno texto que escrevi sobre A Fita Branca para o jornal "O Tempo", há quase duas semanas - e que já aponta alguns incômodos que tive desde então. Digamos que os incômodos aumentaram. A rever.
A nova violência de Haneke (publicado em 15.2.2010)
O crítico francês Michel Mourlet escreveu certa vez: "O cinema é a arte por eleição da violência, já que vem ao mundo nos gestos do homem, no momento em que a força acumulada extravasa, rompe os diques, impulsiona-se em jatos crescentes sobre seu obstáculo. Este momento, que as outras artes só podem sugerir ou simular, a câmera se apossa de forma natural".
Um filme como "A Fita Branca", em cartaz nos cinemas, serve de perfeita ilustração para o que Mourlet defende. Michael Haneke sempre foi uma cineasta para quem a violência é uma questão a ser refletida - ou, mais que isso, a representação da violência através da imagem captada por uma câmera.
"A Fita Branca" é visualmente menos explícito que trabalhos como "Violência Gratuita" e "Caché", do mesmo Haneke. Isso em nada significa que a problematização do ato violento tenha ficado de fora. O filme narra o sombrio conto de uma comunidade do interior alemão assolada por supostos acidentes que vêm perturbando a tranquilidade dos moradores. Estamos no começo do século XX, às vésperas da 1ª Guerra Mundial. Este dado não existe à toa, e toda a ambientação de "A Fita Branca" será devedora de seu momento histórico.
É neste ponto que o filme de Haneke se torna ambíguo. Por um lado, o discurso político do cineasta periga soar incomodamente ingênuo a partir da meia hora final: o particular que caracteriza o drama inicial se torna coletivo no desfecho, e as ações conjuntas de um grupo de pessoas aparentam "responder" ao futuro que estaria reservada à Alemanha nos anos seguintes. É um tipo de psicologismo mediúnico retroativo, em que se busca explicações da insanidade como se estivéssemos a testemunhar um experimento com ratos de laboratório induzidos a certos estímulos.
Por outro lado, a construção do filme como objeto de cinema parece estar menos preocupada com discursos do que em parecer perfeitamente cristalina, de arestas aparadas e com cada elemento no lugar mais correto possível- dos atores posicionados nos longos planos fixos à cenografia, da fotografia em preto e branco aos olhares atônitos dos atores. O mundo de "A Fita Branca", nesse sentido, é um mundo existente só dentro da imagem, sem compromissos naturalistas com o que possa estar ocorrendo fora dela. Quando se deixa levar por isso, o filme se torna grandioso.
Isso porque Haneke, com toda a controvérsia que o cerca, é, essencialmente, um diretor de horror. O que são, afinal, "A Professora de Piano", "Violência Gratuita", "Tempos de Lobo"? Em "A Fita Branca", ele assume de vez essa faceta e se insere numa chave bastante devedora ao suspense. Sempre sendo original, Haneke emula de "A Vila" (M. Night Shyamalan) a "Dogville" (Lars Von Trier), de "O Inquilino" (Roman Polanski) a "A Cidade dos Amaldiçoados" (John Carpenter), todos filmes que lidaram com a claustrofobia de um espaço de onde a violência surge das menores coisas. Mas é, sempre, Michael Haneke, esse mago austríaco-alemão ainda passível de incômodos.
6 comentários:
MM, as criações do Haneke me parecem de certa forma sempre voltadas a recônditos complexos de atingirmos. Há algo de intrínseco à alma humana e eu não sei se é a violência ou se a violência é o que temos de visível desse desconserto do mundo e dos homens. É um diretor que certamente exige demais, por trazer muito que não sabemos de nós mesmos e é justamente essa dose estranha de "não saber" que "A Fita Branca" contém que me deixou extremamente instigada com o filme.
também não sou muito fã do filme. rever ele aqui serviu pra perceber o que havia já me incomodado antes, e é um pouco no que o texto toca, nessa tentativa que o haneke tem em alguns de seus filmes de querer justificar uma espécie de tese que ele tem em relação ao que ele acha da crueldade humana. ai me incomodam várias coisas, tá lá o pai que reprime o filho por esse se masturbar, corte seco para o médico transando em pé com a amante. é essa montagem que, pouco a pouco, vai irritando, se tornando óbvia, ensaiando o tempo todo, querendo provar uma teoria na cabeça do haneke. da primeira vez que vi o filme, ele me impactou e saí com um bom comentário dele. esse ar estranho me deixou meio zonzo também. rever me fez perceber como o filme é bem capenga.
Ucha, é esse "não saber" que me parece mais frágil quando volto a "A Fita Branca". Porque, pra um filme que talvez busque um recôndito desconhecido da alma humana, como você aponta, ele sabe até demais, não acha? É o que o Leo diz: apesar de extremamente bem realizado, é um filme-tese dos mais diretos e secos, muito mais que qualquer estripulia do Von Trier em "Dogville" (tão injustamente taxado de filme-tese na época, quando na verdade se tratava de uma ironia descarada com a ideia do filme-tese).
Talvez o que tem me atrapalhado ao pensar no filme do Haneke é que ele guarda certezas demais - sobre si mesmo, sobre o mundo, sobre a violência, sobre o cinema. Como eu disse, a rever.
Só registro que outros trabalhos do Haneke, especialmente os da fase inicial da carreira e depois "Violência Gratuita" e "Caché" eram igualmente filmes muito certos do que buscavam, mas que pareciam tatear essa busca, fuçar nos caminhos por onde passava. "A Fita Branca", nesse raciocínio, seria o ponto de chegada, a certeza do que se buscava lá atrás.
Entendo o que dizem, mas não sei se minha leitura (ou tentativa de diálogo mesmo) seja no sentido dele ter alguma certeza. Que ele guarda um desconforto e desencanto com o homem me parece óbvio, mas não sei se vejo nessa secura um "não-lugar" já defasado nessa iminência de uma guerra que iria destruí-lo ainda mais ou algum apontamento certeiro dele diante do tema. Um filme a rever também, claro...vi apenas uma vez e embebida pelos outros filmes dele. A secura me lembrou em alguma medida "O Sétimo Continente"; onde não se diz nada praticamente e o que parece haver é uma constatação da impossibilidade. Talvez eu esteja mais divagando que qualquer outra coisa, mas é sempre bom dialogar sobre um diretor como ele. p.s: eu adoro Dogville MM...pra você não achar que eu sou anti-Von Trier por excelência.. ;)
Depois da obra-prima absoluta A professora de piano, Haneke só faz melhorar. Vai ganhar o Oscar. Vai ser bom para dar maios visibilidade à obra dele. Grande mestre do cinema europeu!
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