sábado, 6 de fevereiro de 2010

A saga de uma guerra ao terror



por Marcelo Miranda

Nunca o nome de Kathryn Bigelow foi tão escrito ou pronunciado como nos últimos seis meses. Desde quando "Guerra ao Terror", sétimo longa-metragem da carreira da diretora, começou a aparecer em listas de premiações ao redor do mundo (e especialmente nos EUA), o público em geral passou a prestar atenção nessa cineasta de 58 anos cujo trabalho mais conhecido até então era o policial "Caçadores de Emoção" (1992) - menos por seu nome nos créditos do que pela presença de Keanu Reeves e Patrick Swayze no elenco e as constantes repetições televisivas.

Agora Bigelow está nas alturas e todo mundo quer saber sobre ela. "Guerra ao Terror" teve nove indicações ao Oscar 2010 e disputa de igual para igual com o franco favorito da premiação deste ano, a superprodução "Avatar", de James Cameron - ironicamente, ex-marido dela.

Até o momento, o filme já acumula aproximadamente 50 troféus e um incontável número de indicações nas mais diversas premiações mundo afora. O fenômeno de "Guerra ao Terror" é tamanho que, inicialmente lançado apenas em DVD no Brasil, em meados do ano passado, o longa chega às salas de cinema hoje, após um erro estratégico da distribuidora Imagem.

O filme estreou na competição do Festival de Veneza de 2008 e saiu cravejado de más críticas. Lançado no circuito comercial norte-americano em junho de 2009, fracassou nas bilheterias, arrecadando apenas US$ 13 milhões (custou US$ 11 milhões). O caminho natural, na avaliação da Imagem, foi evitar o mesmo desastre no Brasil. Optou-se pela distribuição exclusivamente em DVD, para lojas e locadoras.

De repente, a partir de setembro, "Guerra ao Terror" se tornou onipresente na mídia cinematográfica. Diante da "pressão" e apostando na visibilidade propiciada pelas indicações ao Globo de Ouro e, agora, ao Oscar, a Imagem voltou atrás e decidiu bancar o filme nas salas de exibição.

Essa história ilustra bem a própria trajetória de Kathryn Bigelow. Uma das únicas diretoras no mundo a apostar no chamado cinema de gênero, ela jamais tinha conseguido ser realmente reconhecida pelo seu trabalho. Mesmo "Caçadores de Emoção" se transformou numa diversão ligeira de Sessão da Tarde, o que nunca permitiu que se refletisse devidamente a força que o filme possui ainda hoje.

O mesmo se pode dizer de outros títulos da cineasta, desde o primeiro, "Quando Chega a Escuridão" (1987), mistura de terror e erotismo protagonizada por vampiros sanguinários. Bigelow trilhou o caminho independente desde sempre, ainda que conseguisse grande visibilidade na distribuição de seus filmes, muito pela presença de nomes fortes da indústria - Ralph Fiennes na ficção "Estranhos Prazeres" (1995), Harrison Ford em "K-19: The Widowmaker" (2002).

Porém, o fantasma da pouca renda assombra Bigelow incessantemente. Tanto "O Peso da Água" (2000) quanto "K-19", os dois filmes anteriores a "Guerra ao Terror", tiveram pífia arrecadação, tornando a diretora um veneno de bilheteria - o que, na máquina de fazer filmes que é Hollywood, onde o lucro está acima de qualquer outro elemento, faz do realizador imediata "persona non grata".

Bigelow não se intimidou. Foi buscar dinheiro fora dos EUA e conseguiu financiamento da produtora francesa Voltage Pictures para seu filme de guerra ambientado no Iraque de Bush Jr.. A ambição da diretora era filmar em terras iraquianas, mas por óbvias razões de segurança ela montou seu bunker na fronteira da Jordânia (não tão geograficamente longe dos planos iniciais).

O espaço se transforma no território de atuação de um grupo de desarmadores de bombas do Exército dos EUA, personagens centrais de "Guerra ao Terror" (tradução genérica e infeliz para "The Hurt Locker"). Esse grupo de soldados vive sob tensão constante, agravada pela chegada de um novo integrante (vivido por Jeremy Renner, indicado ao Oscar de melhor ator) com instinto autodestrutivo.

CRÍTICA DE GUERRA AO TERROR
Filme questiona limites humanos em campo armado


Dentro de sua estrutura dramática, “Guerra ao Terror” se constitui numa narrativa vertical: a cada nova situação, a busca por uma resolução. A relação que a diretora Kathryn Bigelow estabelece com o espectador é horizontal: a tensão crescente vai acumulando novos elementos que formarão a personalidade do soldado interpretado por Jeremy Renner. Inicialmente, trata-se de um filme sobre um coletivo – o grupo de desarmadores de bombas norte-americano que está a serviço no Iraque. Ao término, tem-se a antissaga de um anti-herói, movimento cíclico que o filme faz e o qual só nos é revelado nos instantes finais.

Essa confusão entre o que acontece dentro e fora da imagem é o que de mais rico “Guerra ao Terror” possui – e também de mais complexo. Não se trata de um filme de guerra convencional. O mais incômodo, talvez, é que, a princípio, nem parece um projeto antibelicista, tamanha a secura com que Bigelow trata a imagem e os desdobramentos do enredo.

Esse olhar duro e destituído de sentimentalismo sobre uma realidade tão violenta como a invasão de um país por uma potência estrangeira nunca se traveste de discurso. Bigelow acredita que o choque está naturalmente naquilo que ela busca captar. O trabalho suicida com o qual os personagens precisam lidar é suficientemente violento para que a diretora possa se eximir de ideologias.

É um filme pronto, bem resolvido, que está na tela sem buscar totalizações fora dela. O cinema é seu espaço de excelência, assim como sempre o foi na obra de Bigelow. Por lidar com um universo tão palpável e tabu – como é a guerra no Iraque para os norte-americanos –, a diretora sofreu as consequências, vendo seu filme naufragar em más bilheterias e incompreensão de quem buscava, em “Guerra ao Terror”, mais um trabalho de cunho pacifista.

Esperar de Bigelow qualquer tentativa de demagogia ou sensibilização gratuita é não aderir a seu projeto artístico mais estimulante. Como no cinema de Howard Hawks (especialmente “Hatari!” e “Onde Começa o Inferno”, aos quais “Guerra ao Terror” parece emular a todo instante), a ação da cineasta se concentra em instantes, sempre na busca pela mais intensa valorização da cena e da encenação. De Samuel Fuller (“Agonia e Glória”, para ficar dentro do mesmo universo da guerra), Bigelow herda a selvageria de um mundo niilista, em que o inimigo à frente, ainda que tão humano como seu antagonista, não pode ser poupado se as circunstâncias assim o exigirem.

Por mais que os escafandros usados pelos soldados para se protegerem os tornem verdadeiros super-homens, a armadura só faz sentido na medida em que vemos pessoas de carne e osso ali dentro – daí a força de significado de quando o personagem de Renner retira a roupa e diz que, se for para morrer, que ele o faça “confortavelmente”.

É esse tipo de ato que “Guerra ao Terror” vai problematizar: muito mais que suportar a adrenalina de um conflito armado, há de se aceitá-la como inerente à própria natureza humana, mesmo que não haja palavras para explicar isso. Está tudo na imagem.

*Originalmente publicado em O TEMPO no dia 5.2.2010

2 comentários:

Leo Cunha disse...

Excelente texto, Marcelo!
O 3º parágrafo (Esse olhar duro...) é das melhores coisas que eu li sobre o filme, até agora.
Tomara que muitas pessoas resolvam ver no cinema.

Marcelo Miranda disse...

Valeu, Leo! Pena que o filme entrou apenas no Ponteio em BH, a pior sala da cidade. Estou na torcida pra ele ganhar mais espaço na semana que vem.