domingo, 28 de novembro de 2010

Festival de Brasília: "Transeunte", de Eryk Rocha



por Marcelo Miranda

Antes mesmo de tomar consciência do mundo, Eryk Rocha era um inquieto. Nasceu em Brasília em 1978, quando o pai, Glauber Rocha, filmava "A Idade da Terra", seu filme derradeiro. Viveu na Europa até os 15 anos, ficou na Colômbia (país da mãe, a videoartista Paula Gaitán) até os 20, estudou cinema em Cuba e hoje reside no Rio de Janeiro, sua autêntica terra natal, no corpo e na alma. Não é coincidência, portanto, que os filmes de Eryk trafeguem pela geografia, espaço e tempo - ora buscando memórias do passado ("Rocha que Voa"), outras captando o presente ("Intervalo Clandestino") e algumas revirando conceitos e lugares ("Pachamama").

Menos surpreendente ainda é Eryk estrear na ficção com um filme denominado "Transeunte". Exibido na segunda noite de competição do 43º Festival de Brasília, na noite de quinta-feira - em sessão dedicada por Eryk à mãe e "ao meu pai, Glauber" -, o trabalho provocou impacto excepcional na plateia e nos críticos e jornalistas. Apesar de se assumir como relato fictício, o longa-metragem é construído a partir do contato do protagonista - um recém-aposentado de 65 anos chamado Expedito - com a realidade, a urbanidade, os tipos que circulam por calçadas, ruas, avenidas e estabelecimentos comerciais ou de entretenimento.

A fagulha para "Transeunte" surgiu quando Eryk estava no Festival de Cannes, em maio de 2004, quando lá exibiu o curta-metragem "Quimera". Olhando ao redor, naquele dia a dia abarrotado de celebridades, câmeras, fotógrafos e glamour, o diretor pensou num contraponto. "Eu era um completo anônimo ali. Então me veio essa imagem, a de um homem que ninguém conhece: se ele morre, quem vai contar sobre sua passagem no mundo?".

A questão perseguiu Eryk Rocha durante os esboços de argumento rabiscados nos dias posteriores. Após entraves típicos da escrita, convidou a roteirista Manuela Dias para colaborar no script. "Me convenci de que, se existia algo possível de registrar o caminho de um homem como esse, no sentido de materializar a sua existência, esse algo seria o cinema".

Ao longo dos anos, Eryk foi aprimorando o argumento e decidiu que, para ser honesto com sua própria origem de documentarista, precisaria incorporar elementos do real ao recorte ficcional. Não que tenha sido pensado assim tão claramente: para o diretor, o trânsito entre um e outro é não apenas natural, mas enriquecido pela própria confusão que isso pode gerar. "Na sessão aqui em Brasília, dois espectadores me procuraram querendo saber se o filme era mesmo uma ficção ou se era um documentário sobre aquele personagem. Eu não podia querer um retorno melhor que esse", exalta.

A escolha pela fotografia em preto-e-branco também se deveu a uma escolha estética. "Desde aquela imagem inicial do homem desconhecido, tudo o que pensei era em preto e branco. Nunca cogitei que o filme fosse colorido".

Em "Transeunte", Expedito (vivido pelo ator baiano Fernando Bezerra), homem de poucas - ou nenhuma - palavras, circula pelas ruas do Rio de Janeiro sem qualquer tipo de perspectiva ou ambição. Mora sozinho num apartamento, não se incomoda com a barulhenta construção em frente, apenas fala de si quando perguntado por outros e parece só ter como ente querido a memória de uma mulher (sua mãe ou esposa, algo que o filme propositadamente confunde).

Num dia comum, ele descobre as maravilhas de um rádio de pilha, o qual carrega para todo lado. Esse rádio - e as músicas e notícias que saem dele - passam a servir de "voz interior" de Expedito, como define Eryk Rocha. "O que ele escuta faz comentários do que ele vê. Eu queria que o radinho de pilha fosse um momento de virada para esse homem", comenta Eryk.

*Originalmente publicado em O TEMPO no dia 27.11.2010

Um comentário:

Anônimo disse...

Gostei da matéria, um esclarecimento, a montagem da Ava Rocha é primorosa , e na realidade ela criou um novo roteiro a partir da montagem , lógico junto com Eryk, mas muito do que esta na tela se deve evidente a otima direcao do Eryk +sobretudo a um filme de construção na montagem, 99 por cento é construído na montagem e nao obedece ao roteiro orinal, se manteve o argumento .Isso é frequente no cinema contemporâneo , nao é sem duvida nenhuma novidade
Acho sempre ressaltar a importância do montador, do qual nenhum jornal o matéria critica fala, é um erro de avaliação no que se refere ao cinema de autor contemporâneo que transita entre o documentário e a ficção, alias discussão que existe desde o cinema de invenção dos primórdios