
Uma mostra com seis filmes do francês Jacques Rivette está em andamento em Belo Horizonte, no Cine Humberto Mauro (confira programação aqui). Escrevi uma matéria a respeito no começo da semana, que posto abaixo.
RIVETTE, AQUELE INVISÍVEL
Jean-Luc Godard, François Truffaut, Claude Chabrol, Eric Rohmer e... Jacques Rivette. Quase sempre, ao se enumerar quem compôs o movimento da Nouvelle Vague francesa, o nome dele fica por último nas lembranças de cinéfilos não conhecedores de obra. Muito disso se deve a um quase total desaparecimento dos filmes de Rivette em mostras e circuito comercial, tornando-o uma figura mais mítica do que propriamente vista.
Parte dessa obscuridade vai ser sanada em Belo Horizonte até o dia 28 de março, quando o Cine Humberto Mauro exibirá, espalhados em diversas sessões, seis longas-metragens assinados por Rivette. Para além da importância fundamental de uma mostra dessas, é oportunidade rara de tomar contato com um dos realizadores mais complexos e fascinantes do cinema mundial.
"Rivette fez filmes impactantes que sumiram de circulação após serem exibidos, o que às vezes cria a falsa impressão de que a obra dele é para ‘iniciados’", acredita o crítico e pesquisador Cássio Starling Carlos. "Mas, na verdade, muitos desses filmes simplesmente não foram vistos, porque caíram completamente na invisibilidade após aquele primeiro impacto".
Para Cássio, depois de Godard, Rivette é o cineasta da Nouvelle Vague que mais radicaliza as pesquisas de linguagem características do movimento - surgido no final dos anos 50 a partir da inquietação de um grupo de críticos da revista "Cahiers du Cinéma" e que gerou filmes como "Os Incompreendidos" (1959), de Truffaut, "Acossado" (1960), de Godard, "O Signo do Leão" (1959), de Rohmer, e "Nas Garras do Vício" (1958), de Chabrol.
O primeiro longa de Rivette, "Paris nos Pertence", data de 1960. O filme seguinte, "A Religiosa", é de seis anos depois. O esticado intervalo - no mesmo período, Godard, por exemplo, filmou outros 11 longas - vai ao encontro da preocupação formal de Rivette e todo seu cuidado na concepção de cada plano, o que gerou o "ruído" de seu sumiço na memória dos espectadores e estudiosos. "Ainda que seja a figura ideologicamente mais importante daquele momento na França, Rivette fez apenas um único filme dentro do período fértil da Nouvelle Vague, que vai até 1965", aponta o crítico e professor Francis Vogner dos Reis. "Foi ele e Rohmer quem criaram as bases do movimento como uma relação específica do artista com a história do cinema".
Francis descreve Rivette como um cineasta "materialista", para quem o aspecto sensorial e contemplativo, ainda que presente, não era um elemento definidor. "Os plano de duração longa do Rivette não são os do fluxo de imagens e tempos mortos. Ao contrário: eles sempre consistem num princípio de ação. Nos filmes dele, onde supostamente não acontece nada sempre tem algum movimento, um prolongamento da ação. Isso o aproxima de um cineasta como Howard Hawks, a quem ele admirava". O próprio Rivette assim definia sua arte: "O cinema consiste em capturar algo que acontece em certo tempo e espaço e que não ocorrerá novamente".
Cássio Starling problematiza as relações de Rivette com outros realizadores, algo atrelado à imagem da Nouvelle Vague. "Ele dialoga com forças do próprio cinema. Um de seus filmes recentes, ‘Não Toque no Machado’ (2007), torna a palavra importante como fazem Manoel de Oliveira e Julio Bressane", aponta. "Não vejo a cinefilia do Rivette no sentido clássico do culto. Ele tem uma bibliofilia e teatrofilia mais acentuados".
Crítica e teatro
A mostra Jacques Rivette, sob coordenação de Maria Chiaretti, não dá conta de toda a filmografia do cineasta - no total, Rivette tem até o momento 19 longas-metragens, tendo exibido o mais recente, "36 Vues du Pic Saint Loup", no Festival de Veneza do ano passado. Porém, a seleção é porta de entrada ideal para se conhecer a estética e riqueza do diretor.
Há, por exemplo, o trabalho que lhe trouxe de volta aos holofotes, nos anos 90: a obra-prima "A Bela Intrigante", filme monumental de mais de quatro horas de duração que ganhou do próprio diretor, pouco tempo depois do lançamento, uma versão reduzida para 150 minutos e subintitulada "Divertimento". As duas versões - com trechos distintos entre si - vão ser exibidas no Cine Humberto Mauro. Também na programação está "Céline e Julie Vão de Barco" - ou, no original, "Céline et Julie Vont en Bateau" -, que reúne algumas das principais características da obra do diretor, como o profundo diálogo com o teatro.
Rivette deve muito de sua expressividade justamente às artes cênicas - mais precisamente, ao conceito de encenação teatral. "Ele sempre dialogou intensamente com o teatro e o que ele considerava a ‘mise en scène’ [pôr em cena], da qual foi dos grandes teóricos na ‘Cahiers du Cinéma’", diz o crítico Cássio Starling Carlos. "Dos filmes aos quais assisti, ele não assinava com ‘dirigido por Jacques Rivette’, mas ‘mise en scène de Jacques Rivette’. O teatro entra como tema, como espaço dos personagens e como a teatralização da própria existência".
Nos anos 50, Rivette foi um pensador seminal de um cinema até então pouco valorizado fora da Europa, em especial os norte-americanos Howard Hawks e Otto Preminger, de quem era entusiasta e sobre quem escreveu textos até hoje referenciais para a reflexão séria de cinema. O crítico Francis Vogner acredita que Rivette continua demonstrando, nos filmes, as preocupações que tinha como crítico: "Se a gente for ler o que ele fala dos próprios filmes, o procedimento retórico do Rivette-cineasta é muito parecido com o Rivette-crítico. O limite de um e outro está no processo: ao refletir o trabalho de terceiros, ele analisava o objeto acabado; como diretor, está no meio de um procedimento, e podemos senti-lo caminhar nesse sentido".
Cássio Starling, por sua vez, evita vincular a experiência crítica de Rivette com o ofício de diretor. "Não é algo sobre o qual eu tenha pensado com muita profundidade, porque buscar essas relações talvez possa reduzir a obra dele no cinema a uma mera ilustração do que escrevia".
*Matéria originalmente publicada em O TEMPO no dia 15.3.2010
**Busque textos traduzidos de Jacques Rivette no