sábado, 20 de março de 2010

Jacques Rivette



por Marcelo Miranda

Uma mostra com seis filmes do francês Jacques Rivette está em andamento em Belo Horizonte, no Cine Humberto Mauro (confira programação aqui). Escrevi uma matéria a respeito no começo da semana, que posto abaixo.

RIVETTE, AQUELE INVISÍVEL
Jean-Luc Godard, François Truffaut, Claude Chabrol, Eric Rohmer e... Jacques Rivette. Quase sempre, ao se enumerar quem compôs o movimento da Nouvelle Vague francesa, o nome dele fica por último nas lembranças de cinéfilos não conhecedores de obra. Muito disso se deve a um quase total desaparecimento dos filmes de Rivette em mostras e circuito comercial, tornando-o uma figura mais mítica do que propriamente vista.

Parte dessa obscuridade vai ser sanada em Belo Horizonte até o dia 28 de março, quando o Cine Humberto Mauro exibirá, espalhados em diversas sessões, seis longas-metragens assinados por Rivette. Para além da importância fundamental de uma mostra dessas, é oportunidade rara de tomar contato com um dos realizadores mais complexos e fascinantes do cinema mundial.

"Rivette fez filmes impactantes que sumiram de circulação após serem exibidos, o que às vezes cria a falsa impressão de que a obra dele é para ‘iniciados’", acredita o crítico e pesquisador Cássio Starling Carlos. "Mas, na verdade, muitos desses filmes simplesmente não foram vistos, porque caíram completamente na invisibilidade após aquele primeiro impacto".

Para Cássio, depois de Godard, Rivette é o cineasta da Nouvelle Vague que mais radicaliza as pesquisas de linguagem características do movimento - surgido no final dos anos 50 a partir da inquietação de um grupo de críticos da revista "Cahiers du Cinéma" e que gerou filmes como "Os Incompreendidos" (1959), de Truffaut, "Acossado" (1960), de Godard, "O Signo do Leão" (1959), de Rohmer, e "Nas Garras do Vício" (1958), de Chabrol.

O primeiro longa de Rivette, "Paris nos Pertence", data de 1960. O filme seguinte, "A Religiosa", é de seis anos depois. O esticado intervalo - no mesmo período, Godard, por exemplo, filmou outros 11 longas - vai ao encontro da preocupação formal de Rivette e todo seu cuidado na concepção de cada plano, o que gerou o "ruído" de seu sumiço na memória dos espectadores e estudiosos. "Ainda que seja a figura ideologicamente mais importante daquele momento na França, Rivette fez apenas um único filme dentro do período fértil da Nouvelle Vague, que vai até 1965", aponta o crítico e professor Francis Vogner dos Reis. "Foi ele e Rohmer quem criaram as bases do movimento como uma relação específica do artista com a história do cinema".

Francis descreve Rivette como um cineasta "materialista", para quem o aspecto sensorial e contemplativo, ainda que presente, não era um elemento definidor. "Os plano de duração longa do Rivette não são os do fluxo de imagens e tempos mortos. Ao contrário: eles sempre consistem num princípio de ação. Nos filmes dele, onde supostamente não acontece nada sempre tem algum movimento, um prolongamento da ação. Isso o aproxima de um cineasta como Howard Hawks, a quem ele admirava". O próprio Rivette assim definia sua arte: "O cinema consiste em capturar algo que acontece em certo tempo e espaço e que não ocorrerá novamente".

Cássio Starling problematiza as relações de Rivette com outros realizadores, algo atrelado à imagem da Nouvelle Vague. "Ele dialoga com forças do próprio cinema. Um de seus filmes recentes, ‘Não Toque no Machado’ (2007), torna a palavra importante como fazem Manoel de Oliveira e Julio Bressane", aponta. "Não vejo a cinefilia do Rivette no sentido clássico do culto. Ele tem uma bibliofilia e teatrofilia mais acentuados".

Crítica e teatro
A mostra Jacques Rivette, sob coordenação de Maria Chiaretti, não dá conta de toda a filmografia do cineasta - no total, Rivette tem até o momento 19 longas-metragens, tendo exibido o mais recente, "36 Vues du Pic Saint Loup", no Festival de Veneza do ano passado. Porém, a seleção é porta de entrada ideal para se conhecer a estética e riqueza do diretor.

Há, por exemplo, o trabalho que lhe trouxe de volta aos holofotes, nos anos 90: a obra-prima "A Bela Intrigante", filme monumental de mais de quatro horas de duração que ganhou do próprio diretor, pouco tempo depois do lançamento, uma versão reduzida para 150 minutos e subintitulada "Divertimento". As duas versões - com trechos distintos entre si - vão ser exibidas no Cine Humberto Mauro. Também na programação está "Céline e Julie Vão de Barco" - ou, no original, "Céline et Julie Vont en Bateau" -, que reúne algumas das principais características da obra do diretor, como o profundo diálogo com o teatro.

Rivette deve muito de sua expressividade justamente às artes cênicas - mais precisamente, ao conceito de encenação teatral. "Ele sempre dialogou intensamente com o teatro e o que ele considerava a ‘mise en scène’ [pôr em cena], da qual foi dos grandes teóricos na ‘Cahiers du Cinéma’", diz o crítico Cássio Starling Carlos. "Dos filmes aos quais assisti, ele não assinava com ‘dirigido por Jacques Rivette’, mas ‘mise en scène de Jacques Rivette’. O teatro entra como tema, como espaço dos personagens e como a teatralização da própria existência".

Nos anos 50, Rivette foi um pensador seminal de um cinema até então pouco valorizado fora da Europa, em especial os norte-americanos Howard Hawks e Otto Preminger, de quem era entusiasta e sobre quem escreveu textos até hoje referenciais para a reflexão séria de cinema. O crítico Francis Vogner acredita que Rivette continua demonstrando, nos filmes, as preocupações que tinha como crítico: "Se a gente for ler o que ele fala dos próprios filmes, o procedimento retórico do Rivette-cineasta é muito parecido com o Rivette-crítico. O limite de um e outro está no processo: ao refletir o trabalho de terceiros, ele analisava o objeto acabado; como diretor, está no meio de um procedimento, e podemos senti-lo caminhar nesse sentido".

Cássio Starling, por sua vez, evita vincular a experiência crítica de Rivette com o ofício de diretor. "Não é algo sobre o qual eu tenha pensado com muita profundidade, porque buscar essas relações talvez possa reduzir a obra dele no cinema a uma mera ilustração do que escrevia".

*Matéria originalmente publicada em O TEMPO no dia 15.3.2010

**Busque textos traduzidos de Jacques Rivette no

Um comentário:

André Setaro disse...

Pena não estar em Beagá para ver a retrospectiva de Jacques Rivette, imprescindível e fundamental, pois também o considero um dos mais importantes cineastas da Nouvelle Vague. O que vi dele? "A Religiosa", "Quem sabe?", "A Bela Intrigante". Quase nada. E mesmo estes gostaria de revê-los, pois os vi uma única vez.

Apesar de não ser de muitos comentários, em blogs, sempre venho aqui visitar o Polvo, uma das leituras mais interessantes de cinema que pululam pelo espaço virtual. Parabéns à equipe, que tive o prazer de conhecer em Tiradentes, e um abraço particular em você, caro Marcelo Miranda.