sábado, 6 de março de 2010

Laura Cánepa e o terror brasileiro


por Marcelo Miranda

Se o terror é um gênero bem segmentado, o terror brasileiro é ainda mais, por quase puro desconhecimento. Residente em São Paulo, Laura Cánepa mergulhou nas produções do gênero feitas no país e desenvolveu a dissertação de mestrado Medo de Quê? - Uma História do Horror nos Filmes Brasileiros, defendida em 2008, na Unicamp. Leia uma entrevista com a Laura que fiz recentemente, por e-mail.

Como surgiu seu interesse pelo cinema de horror brasileiro?
Quando eu estava escrevendo minha dissertação de mestrado sobre o cineasta Tim Burton, tive que fazer uma longa pesquisa sobre a história do cinema fantástico e acabei me apaixonando pela história desse cinema em geral, e pelo horror em particular. Quando fiz meu projeto de doutorado, surgiu a curiosidade de saber mais sobre a configuração desse gênero no Brasil.

Nos seus levantamentos, quantos filmes de terror você catalogou? Sob quais critérios?
Ao todo, são cerca de 150 longas-metragens, mas, como alguns estão perdidos, não posso ter certeza do número, pois houve casos em que tive que tirar conclusões a partir de dados pouco precisos, como cartazes, títulos e pequenas sinopses. O critério de "identificação" das obras, num primeiro momento, foi o da "autodenominação", mas observei que muitos filmes claramente ligados aos temas e às formas do horror acabavam se apresentando como "dramas", "aventuras", "comédias de humor negro" etc. Então, a partir de uma série de fontes teóricas que reuni ao longo da minha pesquisa de doutorado, estabeleci os seguintes critérios: do ponto de vista temático e estrutural, procurei filmes que trouxessem histórias nas quais elementos monstruosos e/ou inexplicáveis racionalmente causem perplexidade e medo aos personagens da ficção. Do ponto de vista visual e iconográfico, que utilizassem imagens violentas e ao mesmo tempo misteriosas, trabalhando a imprevisibilidade, o corpo violentado, a monstruosidade. E do ponto de vista industrial e comercial, que se ligassem a valores como o sensacionalismo, o choque e/ou apontassem algum vínculo com sucessos estrangeiros do gênero (recurso muito comum, especialmente nos anos 1970).

Qual seria o título mais antigo?
Oficialmente, o começo do horror brasileiro ainda está vinculado ao trabalho do José Mojica Marins, que se eternizou como o coveiro psicopata Zé do Caixão, naquele que foi o primeiro longa-metragem tupiniquim a declarar-se de terror: "À Meia-noite Levarei sua Alma", realizado em São Paulo em 1963. Mas, antes dele, houve outras experiências "híbridas" que me parecem significativas. No que se refere ao cinema sonoro, o primeiro filme a usar temas do horror foi a comédia musical carioca "O Jovem Tataravô", dirigida pelo Luiz de Barros em 1936, nos estúdios da Cinédia. Nesse filme, o comediante Darcy Cazarré interpreta um "novo rico" carioca, que promove um ritual egípcio no qual ressuscita um tataravô falecido em 1822. Apesar da graça da trama e de uma produção caprichada para os padrões da época, não teve grande êxito comercial.

Sempre se diz que o Brasil não tem tradição de cinema de gênero, mas a quantidade de filmes que você catalogou e também o Rodrigo Pereira, que estuda faroestes brasileiros, mostra que há, sim, um movimento.
Não se trata de não haver cinema de gênero, mas dos protocolos de leitura adotados pela crítica e pela academia e também de um certo viés no registro da nossa história do cinema. O desprezo de historiadores e críticos pelo cinema de gênero em geral e pelo horror em particular está ligado a posturas ideológicas que dominaram o projeto modernista cinematográfico nacional estabelecido nos anos 1950, quando se elaborou um discurso que ajudou a constituir o que o pesquisador Jean-Claude Bernardet chama de "historiografia clássica do cinema brasileiro". Segundo ele, essa historiografia estaria dominada pela visão de uma elite de cineastas e críticos que desejavam construir uma tradição cinematográfica genuinamente brasileira - intenção muito oportuna numa época em que nossa elite intelectual estava em busca de um projeto nacional viável e coerente. Tal tradição deveria legar ao cinema brasileiro grandes nomes e grandes filmes que pudessem legitimá-la e dar-lhe algum tipo de interesse artístico e cultural. Cada vez mais, no entanto, os que se interessam pelo cinema nacional são surpreendidos com as lacunas deixadas pela historiografia clássica e sentem-se desafiados a completar a visão construída nos últimos 60 anos.

E é nessas lacunas que estão os filmes de gênero?
Embora estejam presentes com variações em diversas partes do mundo, são mais facilmente identificados com o cinema clássico hollywoodiano, cujas bases estéticas, temáticas e industriais estão ligadas, até hoje, a um número limitado de formas narrativo-ficcionais consagradas. Há um problema cultural, já que nem todas as experiências de cinema clássico de gênero dizem respeito às características e preocupações do Brasil, o que acabou favorecendo um "subgênero" até bastante recorrente no país, que é o da paródia de fórmulas típicas do cinema estrangeiro. Mas devemos considerar, também, que o projeto estético e político dominante para o cinema brasileiro priorizou, durante muito tempo, obras realizadas por uma elite de cineastas que se opunha aos modelos impostos pela indústria de Hollywood. E apontar essas dificuldades em relação à existência de um cinema de gênero no Brasil não significa dizer que não houve repetidas tentativas de estabelecê-lo.

O que mais diferencia o horror brasileiro do de outros países de tradição, como EUA e Itália?
O fato de eles terem uma tradição, e nós, não. Como observa Lúcio Reis, autor de "A Cultura do Lixo: O Horror Cinematográfico Brasileiro", apesar de pouco lembrado, é representativo e expressivo. O caráter híbrido desse cinema talvez configure um problema se quisermos categorizá-lo, pois, apesar de se apropriar de parte dos clichês mais marcantes do horror canônico, jamais se integrou aos paradigmas já estabelecidos da cinematografia mundial do gênero ou se tornou vertente dela. Esse conjunto heterogêneo começou nas comédias e melodramas que dialogaram com os temas góticos e fantásticos até os anos 1950, passou pela obra de cineastas marginais, de realizadores do cinema erótico e de arte.

O cinema brasileiro das leis de incentivo tem espaço para o cinema de gênero, em especial o terror?
Para gênero, tem. Os filmes fantásticos, inclusive, têm estado na moda ("Se Eu Fosse Você", "A Mulher Invisível", "O Homem que Desafiou o Diabo"). Mas, no caso do horror, acho que o teste de mercado ainda não foi feito, e nem sei se os patrocinadores estão mesmo pensando em mercado. Depende muito dos projetos que chegarem às mãos de quem decide. Mas, no universo do cinema amador e semiamador, é um dos gêneros mais praticados no Brasil.

Quais seriam os grandes nomes do horror brasileiro e quais os títulos de maior destaque?
Tenho certa resistência a falar em grandes nomes por não me alinhar à visão excessivamente "autoral" da história do nosso cinema. Mas, logicamente, o Mojica e o Ivan Cardoso (criador do "terrir") são nossos maiores expoentes. O Walter Hugo Khouri e o Carlos Hugo Christensen, cineastas difíceis de classificar, também realizaram filmes de horror nos anos 70. E há dois nomes ligados à pornochanchada, e por isso esquecidos, que merecem crédito por terem feito vários e bons filmes eróticos de horror: John Doo e Jean Garrett.

*Originalmente publicado em O TEMPO no dia 14.2.2010

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