sábado, 20 de março de 2010

Jacques Rivette



por Marcelo Miranda

Uma mostra com seis filmes do francês Jacques Rivette está em andamento em Belo Horizonte, no Cine Humberto Mauro (confira programação aqui). Escrevi uma matéria a respeito no começo da semana, que posto abaixo.

RIVETTE, AQUELE INVISÍVEL
Jean-Luc Godard, François Truffaut, Claude Chabrol, Eric Rohmer e... Jacques Rivette. Quase sempre, ao se enumerar quem compôs o movimento da Nouvelle Vague francesa, o nome dele fica por último nas lembranças de cinéfilos não conhecedores de obra. Muito disso se deve a um quase total desaparecimento dos filmes de Rivette em mostras e circuito comercial, tornando-o uma figura mais mítica do que propriamente vista.

Parte dessa obscuridade vai ser sanada em Belo Horizonte até o dia 28 de março, quando o Cine Humberto Mauro exibirá, espalhados em diversas sessões, seis longas-metragens assinados por Rivette. Para além da importância fundamental de uma mostra dessas, é oportunidade rara de tomar contato com um dos realizadores mais complexos e fascinantes do cinema mundial.

"Rivette fez filmes impactantes que sumiram de circulação após serem exibidos, o que às vezes cria a falsa impressão de que a obra dele é para ‘iniciados’", acredita o crítico e pesquisador Cássio Starling Carlos. "Mas, na verdade, muitos desses filmes simplesmente não foram vistos, porque caíram completamente na invisibilidade após aquele primeiro impacto".

Para Cássio, depois de Godard, Rivette é o cineasta da Nouvelle Vague que mais radicaliza as pesquisas de linguagem características do movimento - surgido no final dos anos 50 a partir da inquietação de um grupo de críticos da revista "Cahiers du Cinéma" e que gerou filmes como "Os Incompreendidos" (1959), de Truffaut, "Acossado" (1960), de Godard, "O Signo do Leão" (1959), de Rohmer, e "Nas Garras do Vício" (1958), de Chabrol.

O primeiro longa de Rivette, "Paris nos Pertence", data de 1960. O filme seguinte, "A Religiosa", é de seis anos depois. O esticado intervalo - no mesmo período, Godard, por exemplo, filmou outros 11 longas - vai ao encontro da preocupação formal de Rivette e todo seu cuidado na concepção de cada plano, o que gerou o "ruído" de seu sumiço na memória dos espectadores e estudiosos. "Ainda que seja a figura ideologicamente mais importante daquele momento na França, Rivette fez apenas um único filme dentro do período fértil da Nouvelle Vague, que vai até 1965", aponta o crítico e professor Francis Vogner dos Reis. "Foi ele e Rohmer quem criaram as bases do movimento como uma relação específica do artista com a história do cinema".

Francis descreve Rivette como um cineasta "materialista", para quem o aspecto sensorial e contemplativo, ainda que presente, não era um elemento definidor. "Os plano de duração longa do Rivette não são os do fluxo de imagens e tempos mortos. Ao contrário: eles sempre consistem num princípio de ação. Nos filmes dele, onde supostamente não acontece nada sempre tem algum movimento, um prolongamento da ação. Isso o aproxima de um cineasta como Howard Hawks, a quem ele admirava". O próprio Rivette assim definia sua arte: "O cinema consiste em capturar algo que acontece em certo tempo e espaço e que não ocorrerá novamente".

Cássio Starling problematiza as relações de Rivette com outros realizadores, algo atrelado à imagem da Nouvelle Vague. "Ele dialoga com forças do próprio cinema. Um de seus filmes recentes, ‘Não Toque no Machado’ (2007), torna a palavra importante como fazem Manoel de Oliveira e Julio Bressane", aponta. "Não vejo a cinefilia do Rivette no sentido clássico do culto. Ele tem uma bibliofilia e teatrofilia mais acentuados".

Crítica e teatro
A mostra Jacques Rivette, sob coordenação de Maria Chiaretti, não dá conta de toda a filmografia do cineasta - no total, Rivette tem até o momento 19 longas-metragens, tendo exibido o mais recente, "36 Vues du Pic Saint Loup", no Festival de Veneza do ano passado. Porém, a seleção é porta de entrada ideal para se conhecer a estética e riqueza do diretor.

Há, por exemplo, o trabalho que lhe trouxe de volta aos holofotes, nos anos 90: a obra-prima "A Bela Intrigante", filme monumental de mais de quatro horas de duração que ganhou do próprio diretor, pouco tempo depois do lançamento, uma versão reduzida para 150 minutos e subintitulada "Divertimento". As duas versões - com trechos distintos entre si - vão ser exibidas no Cine Humberto Mauro. Também na programação está "Céline e Julie Vão de Barco" - ou, no original, "Céline et Julie Vont en Bateau" -, que reúne algumas das principais características da obra do diretor, como o profundo diálogo com o teatro.

Rivette deve muito de sua expressividade justamente às artes cênicas - mais precisamente, ao conceito de encenação teatral. "Ele sempre dialogou intensamente com o teatro e o que ele considerava a ‘mise en scène’ [pôr em cena], da qual foi dos grandes teóricos na ‘Cahiers du Cinéma’", diz o crítico Cássio Starling Carlos. "Dos filmes aos quais assisti, ele não assinava com ‘dirigido por Jacques Rivette’, mas ‘mise en scène de Jacques Rivette’. O teatro entra como tema, como espaço dos personagens e como a teatralização da própria existência".

Nos anos 50, Rivette foi um pensador seminal de um cinema até então pouco valorizado fora da Europa, em especial os norte-americanos Howard Hawks e Otto Preminger, de quem era entusiasta e sobre quem escreveu textos até hoje referenciais para a reflexão séria de cinema. O crítico Francis Vogner acredita que Rivette continua demonstrando, nos filmes, as preocupações que tinha como crítico: "Se a gente for ler o que ele fala dos próprios filmes, o procedimento retórico do Rivette-cineasta é muito parecido com o Rivette-crítico. O limite de um e outro está no processo: ao refletir o trabalho de terceiros, ele analisava o objeto acabado; como diretor, está no meio de um procedimento, e podemos senti-lo caminhar nesse sentido".

Cássio Starling, por sua vez, evita vincular a experiência crítica de Rivette com o ofício de diretor. "Não é algo sobre o qual eu tenha pensado com muita profundidade, porque buscar essas relações talvez possa reduzir a obra dele no cinema a uma mera ilustração do que escrevia".

*Matéria originalmente publicada em O TEMPO no dia 15.3.2010

**Busque textos traduzidos de Jacques Rivette no

quinta-feira, 11 de março de 2010

Trailer genérico de filmes ganhadores do Oscar

Por Leo Cunha

Sabe estes filmes conhecidos como "isca de oscar"? Chamados de "Oscar baits", em inglês, são filmes planejados milimetricamente para conquistar a Academia e abocanhar um punhado de estatuetas.

Pois então: agora está rolando pelos twitters e orkuts o link para um vídeo engraçadíssimo: uma espécie de trailer genérico, que valeria pra todos estes filmes, ou quase todos. As imagens e diálogos são cômica e irritantemente reconhecíveis, mas na verdade não fazem parte de nenhum filme específico.

Como não apareceu ainda nenhuma versão legendada, aproveitei para fazer uma tradução básica. Veja o trailer, leia a tradução abaixo e divirta-se.


TODOS: Bla, bla bla bla bla.
Colher bate no copo.
PROTAGONISTA: Um brinde. Estabelecendo que eu sou o protagonista rico, bem sucedido.. e bonito.
Cochichos.

AMIGO: Preocupação de que alguma coisa pode estar faltando em sua vida.
PROTAGONISTA: Confiança de que nada está faltando em minha vida.
AMIGO: Comentário interrompido sobre...
PROTAGONISTA: Uma reafirmação de que a minha boa sorte não vai mudar.

Batem à porta. Toc toc toc
MULHER MAIS VELHA: Introdução de um personagem sofrendo da deficiência mais específica deste ano... O doente agora está sob sua custódia.
DEFICIENTE: Fala confusa.
PROTAGONISTA: Frustração devido às novas circunstâncias.
MOÇA: Admiracão por sua aparente generosidade.
PROTAGONISTA: Interesse em seu claro desdém pelas convenções sociais, evidenciado pelo seu cabelo tingido.
MOÇA: Meu nome.
PROTAGONISTA: Meu nome.
DEFICIENTE: Bordão.

PROTAGONISTA: Alívio por ter encontrado sentido em minha vida.

AMIGO: Preocupação amiga de que uma série de reviravoltas inesperadas vão acontecer agora
PROTAGONISTA: Cara!

LETREIRO: DO DIRETOR FAMOSO E/OU ESTRANGEIRO

PROTAGONISTA: As diferenças começam a aparecer entre nós.
MOÇA: Acusações sobre a sua sexualidade.

PROTAGONISTA: Suspeita de que um personagem até então considerado confiável se mostra não tão confiável assim.

PROTAGONISTA: Além disso, eu tenho que mostrar um poderoso afeto para ajudar este adolescente latinoamericano a acreditar em si mesmo... Além disso, eu preciso demonstrar a inocência deste humano masculino incrivelmente humilde... Além disso eu decidi lutar ao lado da metáfora dos indígenas contra a metáfora do exército americano.

PROTAGONISTA: Nome da protagonista femininaaaaaaa!

DEFICIENTE: Frase ingênua mas inspiradora. Tosse. E a música horrível sobe.

AMIGO: Delineação específica das principais falhas do seu personagem.
PROTAGONISTA: Reação exagerada.
VOZ EM OFF: Conselho otimista de um amigo negro.

MOÇA: Súplica apaixonada... Repetida aos sussurros.

SUJEITO NA BANHEIRA: Esta cena não entrou na edição final do filme.

PROTAGONISTA: Falas finais inspiradoras de um discurso que os babacas vão citar no perfil de seus facebooks.
TODOS: Yeah!

LETREIRO: ATOR VENCEDOR DO OSCAR
ATRIZ VENCEDORA DO OSCAR
ATOR TENTANDO DESESPERADAMENTE GANHAR UM OSCAR
ATRIZ MAIS VELHA NUMA TENTATIVA DE RETORNO
ATOR ADORADO QUE MORREU ESSE ANO

PROTAGONISTA: Explicação explícita da moral da história, que desajeitadamente leva ao título do filme.

LETREIRO: TÍTULO DO FILME

DEFICIENTE: Oh! Bordão.
TODOS: risos risos risos.
PROTAGONISTA: Não vai ser um filme completamente dramático... porque nós rimos ali.


segunda-feira, 8 de março de 2010

Kathryn Bigelow e o Oscar 2010



por Marcelo Miranda

“Chegou o dia”, suspirou Barbra Streisand, ao abrir o envelope ostentando o nome de Kathryn Bigelow como vencedora do Oscar de melhor direção por seu “Guerra ao Terror”. Aos 58 anos, com oito filmes no currículo e quase sempre correndo por fora do circuito hollywoodiano, Bigelow foi o grande nome e a presença da noite de domingo, no Kodak Theatre, em Los Angeles, ao se tornar a primeira mulher a vencer um Oscar como diretora.

Os votantes da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood deram a “Guerra ao Terror” seis dos nove prêmios aos quais concorria. Nenhum teve peso tão simbólico quanto o de direção a Bigelow em pessoa, na véspera do Dia Internacional da Mulher. O longa sobre um grupo de desarmadores de bombas na guerra do Iraque levou ainda melhor filme e roteiro, entre outros (veja ao lado). “Este é o momento de uma vida”, disse ela, trêmula, com a estatueta dourada nas mãos e minutos antes de retornar ao centro do palco, chamada por um desanimado e pouco à vontade Tom Hanks. “Dedico aos combatentes no Iraque e no Afeganistão”, afirmou.

Foi uma vitória pessoal não apenas para Bigelow, cineasta autoral que sempre apostou em produções de gênero (do terror à guerra, do policial ao suspense). A Academia também reconheceu a possibilidade de supremacia de uma realização independente em cima dos milionários blockbusters. “Avatar”, com seus US$ 500 milhões de orçamento, levou só três prêmios, todos técnicos – um deles, o que James Cameron provavelmente mais almejava, o de efeitos visuais.

A singularidade se mistura à ironia no reconhecimento de “Guerra ao Terror”. Trata-se de um filme rejeitado pela indústria que a Academia representa. Teve financiamento europeu (orçamento de US$ 11 milhões), acumulou péssima bilheteria quando entrou em cartaz nos EUA e foi esnobado inclusive no Brasil, onde saiu apenas em DVD no meio do ano passado pela distribuidora Imagem (só neste ano ganhou as telas de cinema). Hoje, “Guerra ao Terror” é um dos projetos mais valorizados dos últimos anos: são 65 prêmios, incluindo os da noite de domingo no Oscar.

O que significa, então, oscarizá-lo? Ao filme, a essa altura, muito pouco – exceto pela horda de curiosos que de repente passou a prestar atenção naquela jovial senhora de 1m82 que faz “filmes de ação” (alcunha pela qual a mídia inadvertidamente tem reduzido Bigelow).

Já para a produção independente de um modo geral, o Oscar a Bigelow pode representar um respiro e mesmo o estímulo a produtores investirem dinheiro em projetos arriscados e de menor porte. Se “Avatar” deu novo fôlego ao circuito exibidor – com mais de US$ 2 bilhões arrecadados no mundo até agora –, a vitória de “Guerra ao Terror” tem potencial de tirar da gaveta uma provável leva de bons (e baratos) projetos.

É algo com o qual o cinema norte-americano tem sofrido: a falta de oportunidade a nomes que insistem em nadar contrários à maré tecnológica e biliardária das superproduções. Com o aumento da pirataria e a crise econômica, estúdios preferem gastar em lucro certo. “Guerra ao Terror” não deu lucro, mas prestígio. E gastando muito pouco.

Originalmente publicado em O TEMPO no dia 9.3.2010

sábado, 6 de março de 2010

Sobre o Oscar 2010


Kathryn Bigelow, provável primeira fêmea a vencer o Oscar de direção

por Marcelo Miranda

No primeiro Oscar desde meados dos anos de 1940 em que a disputa a melhor filme se dá entre extensos dez indicados, são apenas dois títulos que chegam neste domingo, dia 8, à 82ª edição da premiação da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood com chances reais de saírem vencedores.

Os dois favoritos não poderiam ser mais diferentes entre si. De um lado, o arrasa-quarteirão “Avatar”, direção de James Cameron (recorde de 11 Oscars por “Titanic” em 1998), orçamento de US$ 500 milhões, uso pioneiro das potencialidades do 3D, bilheteria mundial batendo US$ 1 bilhão. Do outro, “Guerra ao Terror”, direção de Kathryn Bigelow, orçamento de US$ 11 milhões, abordagem sem afetações ideológicas sobre o conflito no Iraque, bilheteria mundial de míseros US$ 20 milhões, 70 prêmios na bagagem desde o ano passado. Para dar um gostinho mais íntimo à disputa, Cameron e Bigelow já foram casados (hoje, são bons amigos).

A vitória de um ou de outro será, como sempre, um ponto de vista defendido pela Academia. Por menos que se leve o Oscar a sério (e suas cafonas cerimônias de premiação e toda a politicalha que acontece em seus bastidores dão motivos para o desprestígio), o vitorioso acaba por representar um norte ao qual a indústria norte-americana de cinema pretende se focar.

“Avatar”, sem dúvida alguma, é o filme que uma indústria em crise (como estava Hollywood) mais necessitava. “Avatar” fez as pessoas irem ao cinema, algo que ironicamente estava em baixa nos EUA – e, consequentemente, no resto do mundo (ocidental) – desde o advento das novas tecnologias de projeção doméstica. Os óculos 3D para assistir ao filme de Cameron podem ser incômodos, mas são o que de mais lucrativo Hollywood criou nos últimos tempos.

Se a Academia preferir “Guerra ao Terror”, estará coroando não apenas um filme independente feito com recursos europeus (nenhum estúdio dos EUA quis financiá-lo). Seria, também, a consagração pública de uma carreira consistente, porém errante. Kathryn Bigelow nunca foi chamariz de público; alguns de seus filmes (“Caçadores de Emoção”, “O Peso da Água”, “K-19”) eram mais conhecidos que seu nome – muito por ela trabalhar na chave do cinema de gênero (ação, policial, suspense, guerra), visto com maus olhos por quem acredita que a autoria de uma obra está no fato de ela ser explicitamente distinta de qualquer outra coisa existente.

Se Bigelow levar o Oscar de direção, fará história, sendo a primeira mulher a sair vencedora na categoria. Premiar “Guerra ao Terror” representa, também, atitude corajosa, por se tratar de um filme sobre um momento controverso da história recente norte-americana tratado sem nenhum tipo de discurso ou tomada clara de posição. É uma realização visceral, em que o corpo humano importa muito mais que a mente, e nisso está um dos maiores fascínios proporcionados pela experiência de se assistir ao longa (não por menos, o título original, “The Hurt Locker”, pode ser traduzido como “armário da dor”).

Caso os votantes não se decidirem por maioria e se polarizarem, as zebras dariam uma emoção inesperada à festa do Oscar. Nessa hipótese, sobram chances para “Bastardos Inglórios”, de Quentin Tarantino, e “Preciosa”, de Lee Daniels. Nas disputas de atores, é mais um ano de barbadas. Dificilmente Jeff Bridges (“Coração Louco”) e Sandra Bullock (“Um Sonho Possível”) saem de mãos vazias. E a produção alemã “A Fita Branca”, de Michael Haneke, deve levar o prêmio de filme estrangeiro, seguindo a Palma de Ouro em Cannes, na França, e o Globo de Ouro, nos EUA.

*Originalmente publicado em O TEMPO no dia 7.3.2010

Laura Cánepa e o terror brasileiro


por Marcelo Miranda

Se o terror é um gênero bem segmentado, o terror brasileiro é ainda mais, por quase puro desconhecimento. Residente em São Paulo, Laura Cánepa mergulhou nas produções do gênero feitas no país e desenvolveu a dissertação de mestrado Medo de Quê? - Uma História do Horror nos Filmes Brasileiros, defendida em 2008, na Unicamp. Leia uma entrevista com a Laura que fiz recentemente, por e-mail.

Como surgiu seu interesse pelo cinema de horror brasileiro?
Quando eu estava escrevendo minha dissertação de mestrado sobre o cineasta Tim Burton, tive que fazer uma longa pesquisa sobre a história do cinema fantástico e acabei me apaixonando pela história desse cinema em geral, e pelo horror em particular. Quando fiz meu projeto de doutorado, surgiu a curiosidade de saber mais sobre a configuração desse gênero no Brasil.

Nos seus levantamentos, quantos filmes de terror você catalogou? Sob quais critérios?
Ao todo, são cerca de 150 longas-metragens, mas, como alguns estão perdidos, não posso ter certeza do número, pois houve casos em que tive que tirar conclusões a partir de dados pouco precisos, como cartazes, títulos e pequenas sinopses. O critério de "identificação" das obras, num primeiro momento, foi o da "autodenominação", mas observei que muitos filmes claramente ligados aos temas e às formas do horror acabavam se apresentando como "dramas", "aventuras", "comédias de humor negro" etc. Então, a partir de uma série de fontes teóricas que reuni ao longo da minha pesquisa de doutorado, estabeleci os seguintes critérios: do ponto de vista temático e estrutural, procurei filmes que trouxessem histórias nas quais elementos monstruosos e/ou inexplicáveis racionalmente causem perplexidade e medo aos personagens da ficção. Do ponto de vista visual e iconográfico, que utilizassem imagens violentas e ao mesmo tempo misteriosas, trabalhando a imprevisibilidade, o corpo violentado, a monstruosidade. E do ponto de vista industrial e comercial, que se ligassem a valores como o sensacionalismo, o choque e/ou apontassem algum vínculo com sucessos estrangeiros do gênero (recurso muito comum, especialmente nos anos 1970).

Qual seria o título mais antigo?
Oficialmente, o começo do horror brasileiro ainda está vinculado ao trabalho do José Mojica Marins, que se eternizou como o coveiro psicopata Zé do Caixão, naquele que foi o primeiro longa-metragem tupiniquim a declarar-se de terror: "À Meia-noite Levarei sua Alma", realizado em São Paulo em 1963. Mas, antes dele, houve outras experiências "híbridas" que me parecem significativas. No que se refere ao cinema sonoro, o primeiro filme a usar temas do horror foi a comédia musical carioca "O Jovem Tataravô", dirigida pelo Luiz de Barros em 1936, nos estúdios da Cinédia. Nesse filme, o comediante Darcy Cazarré interpreta um "novo rico" carioca, que promove um ritual egípcio no qual ressuscita um tataravô falecido em 1822. Apesar da graça da trama e de uma produção caprichada para os padrões da época, não teve grande êxito comercial.

Sempre se diz que o Brasil não tem tradição de cinema de gênero, mas a quantidade de filmes que você catalogou e também o Rodrigo Pereira, que estuda faroestes brasileiros, mostra que há, sim, um movimento.
Não se trata de não haver cinema de gênero, mas dos protocolos de leitura adotados pela crítica e pela academia e também de um certo viés no registro da nossa história do cinema. O desprezo de historiadores e críticos pelo cinema de gênero em geral e pelo horror em particular está ligado a posturas ideológicas que dominaram o projeto modernista cinematográfico nacional estabelecido nos anos 1950, quando se elaborou um discurso que ajudou a constituir o que o pesquisador Jean-Claude Bernardet chama de "historiografia clássica do cinema brasileiro". Segundo ele, essa historiografia estaria dominada pela visão de uma elite de cineastas e críticos que desejavam construir uma tradição cinematográfica genuinamente brasileira - intenção muito oportuna numa época em que nossa elite intelectual estava em busca de um projeto nacional viável e coerente. Tal tradição deveria legar ao cinema brasileiro grandes nomes e grandes filmes que pudessem legitimá-la e dar-lhe algum tipo de interesse artístico e cultural. Cada vez mais, no entanto, os que se interessam pelo cinema nacional são surpreendidos com as lacunas deixadas pela historiografia clássica e sentem-se desafiados a completar a visão construída nos últimos 60 anos.

E é nessas lacunas que estão os filmes de gênero?
Embora estejam presentes com variações em diversas partes do mundo, são mais facilmente identificados com o cinema clássico hollywoodiano, cujas bases estéticas, temáticas e industriais estão ligadas, até hoje, a um número limitado de formas narrativo-ficcionais consagradas. Há um problema cultural, já que nem todas as experiências de cinema clássico de gênero dizem respeito às características e preocupações do Brasil, o que acabou favorecendo um "subgênero" até bastante recorrente no país, que é o da paródia de fórmulas típicas do cinema estrangeiro. Mas devemos considerar, também, que o projeto estético e político dominante para o cinema brasileiro priorizou, durante muito tempo, obras realizadas por uma elite de cineastas que se opunha aos modelos impostos pela indústria de Hollywood. E apontar essas dificuldades em relação à existência de um cinema de gênero no Brasil não significa dizer que não houve repetidas tentativas de estabelecê-lo.

O que mais diferencia o horror brasileiro do de outros países de tradição, como EUA e Itália?
O fato de eles terem uma tradição, e nós, não. Como observa Lúcio Reis, autor de "A Cultura do Lixo: O Horror Cinematográfico Brasileiro", apesar de pouco lembrado, é representativo e expressivo. O caráter híbrido desse cinema talvez configure um problema se quisermos categorizá-lo, pois, apesar de se apropriar de parte dos clichês mais marcantes do horror canônico, jamais se integrou aos paradigmas já estabelecidos da cinematografia mundial do gênero ou se tornou vertente dela. Esse conjunto heterogêneo começou nas comédias e melodramas que dialogaram com os temas góticos e fantásticos até os anos 1950, passou pela obra de cineastas marginais, de realizadores do cinema erótico e de arte.

O cinema brasileiro das leis de incentivo tem espaço para o cinema de gênero, em especial o terror?
Para gênero, tem. Os filmes fantásticos, inclusive, têm estado na moda ("Se Eu Fosse Você", "A Mulher Invisível", "O Homem que Desafiou o Diabo"). Mas, no caso do horror, acho que o teste de mercado ainda não foi feito, e nem sei se os patrocinadores estão mesmo pensando em mercado. Depende muito dos projetos que chegarem às mãos de quem decide. Mas, no universo do cinema amador e semiamador, é um dos gêneros mais praticados no Brasil.

Quais seriam os grandes nomes do horror brasileiro e quais os títulos de maior destaque?
Tenho certa resistência a falar em grandes nomes por não me alinhar à visão excessivamente "autoral" da história do nosso cinema. Mas, logicamente, o Mojica e o Ivan Cardoso (criador do "terrir") são nossos maiores expoentes. O Walter Hugo Khouri e o Carlos Hugo Christensen, cineastas difíceis de classificar, também realizaram filmes de horror nos anos 70. E há dois nomes ligados à pornochanchada, e por isso esquecidos, que merecem crédito por terem feito vários e bons filmes eróticos de horror: John Doo e Jean Garrett.

*Originalmente publicado em O TEMPO no dia 14.2.2010

Praça Saens Peña



por Marcelo Miranda

No momento mais tenso de "Praça Saens Peña", o personagem de Chico Diaz grita à esposa, vivida por Maria Padilha: "Por que está fechando a porta? Ninguém se interessa pela nossa conversa!".

É este o mote da estreia do carioca Vinícius Reis na direção: o foco em pessoas que não interessam, gente com quem se cruza todos os dias nas ruas e parece nada ter a nos oferecer. Pois essa gente tão humanamente colocada em cena por Vinícius representa um aspecto pouco focado no cinema brasileiro - a classe média em busca de ascensão social. Para além de um filme geograficamente localizado desde o título, "Praça Saens Peña" expõe dilemas e contradições coletivas, sem abrir mão de dramas essencialmente pessoais.

O escritor encarnado por Diaz apenas quer ganhar dinheiro e sustentar esposa e filha, enquanto a mulher vive andando em nuvens na busca por um sonhado apartamento próprio - os conflitos surgem dessa premissa. São pessoas comuns, estúpidas até, que Vinícius retrata com o carinho raro de um realizador que tateia em busca de um caminho para si mesmo e ao cinema que faz. A trajetória tem tropeços evidentes, mas o que mais exala é o frescor de uma narrativa pontual, na qual o comum e o banal estão no centro, sem qualquer afetação.

terça-feira, 2 de março de 2010

De Paris às praias

por Ursula Rösele

Brasil, país tropical, praia e tal. Cerveja = loira, gelada, refrescante e tal. Nós temos mais morenas aqui, mas ok, não temos a tradição de beber tanta cerveja escura e bem, cerveja escura não combina com sol e biquinis. Daí surge uma loira, dessas que estão nos tablóides com certa constância geralmente abusando do excesso de grana vindo de berço, com atitudes pra lá de reprimíveis, “devassas”. A loira vem pro carnaval no Rio, se depara com uma pista enorme na qual mulheres de corpos esculturais desfilam coloridas, com fantasias que variam de grandes saias e paetês a basicamente nada. Uma purpurinazinha pra tapar as “partes”, como a esposa de Hans Donner tantas vezes exibiu em horários nobres na nossa “nobre” emissora de TV. A loira, certamente muito bem paga, com uma grana que ela nem bem precisava, foi convidada a exibir sua magreza num vestido preto enquanto se delicia com uma lata de cerveja Devassa. O prazer que ela sente é pela nossa “loira” mais famosa, creio eu.

Pesquisando rapidamente na internet, encontrei três de nossas marcas que se deliciam com as paixões nacionais, levemente despidas, mas com a clara desculpa de estarem na praia, como bem disse o cronista da Folha, João Pereira Coutinho (texto reproduzido abaixo). Lá pode, claro. Paris Hilton, a devassa americana não tem o direito de pisar em solo nacional e insinuar o que nossas mulheres já escancararam tantas vezes, é um justificadíssimo assombro.

Imaginem só, a loira Hilton recebendo a notícia de que seu comercial foi proibido no país. Ela vai à sua memória recobrar os momentos que teve aqui e do quê se lembra? Da tal grande pista e dos seios à mostra sendo vangloriados pelas mesmas carolas e autorregulamentações que sintonizaram suas TVs – isso quando não compraram espaços nos camarotes de nossas cervejas pudicas – no Carnaval 2010. Hipocrisia pouca é bobagem...

SKOL



BRAHMA



NOVA SCHIN



A DEVASSA PARIS



Santas e prostitutas, por João Pereira Coutinho
(Folha de S.Paulo, 2 de março de 2010)

Censurar Paris Hilton é um gesto honroso e até higiênico: na sua vulgaridade plástica, Paris Hilton é um insulto à beleza natural das mulheres brasileiras. Fosse eu presidente da República e jamais Paris Hilton poderia estrelar em comercial televisivo. Seria como convidar um futebolista californiano para jogar na seleção canarinho.

Acontece que o governo brasileiro não censurou Paris por motivos patrióticos, ou até estéticos, o que seria compreensível. Censurou por motivos éticos. Eis a história: Paris foi convidada para fazer campanha publicitária de uma cerveja. O filme mostra Paris, em hotel carioca, colada à janela do quarto, passando a lata da bebida pelo corpo. Simula prazer.

Cá fora, o mundo simula delírio. Um rapaz, versão moderna e ridícula de James Stewart em "Janela Indiscreta", fotografa a lata, não Paris, com verdadeiro fervor alcoólico. Na praia, a multidão aplaude o espetáculo e bebe em homenagem. A Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres não gostou. Eu também não gosto de uma secretaria com esse nome, mas divago. A juntar ao repúdio governamental, alguns consumidores também se sentiram chocados com a indecência de Paris. E o Conselho de Autorregulamentação Publicitária abriu três processos pela manifesta imoralidade do comercial.

Uma coisa é ter mulheres na praia, seminuas, bebendo vários barris de cerveja. Outra, bem diferente, é ter uma mulher de vestido negro, na janela de um quarto de hotel, com uma lata de cerveja na mão. Para os moralistas da cerveja, na praia vale tudo. No quarto, não vale nada. E quando surge uma imagem demoníaca dessas, a solução é proibir. Na cabeça deles, a imagem degrada as mulheres e, em especial, a mulher loira, universalmente considerada a versão feminina de Forrest Gump.

Não vale a pena perder tempo com a profunda contradição do raciocínio: a sexualização onipresente na cultura popular brasileira faz de Paris Hilton um hino à castidade. Mas vale a pena perder tempo com a natureza paternalista de um governo que ressuscita os piores clichês do feminismo rasteiro para defender a sua dama.

O que nos disse o movimento feminista que explodiu pelo mundo depois da Segunda Guerra? Não é possível resumir em poucas frases a multiplicidade de argumentos e até de movimentos que marcharam pela causa. Mas, simplificando, o feminismo apresentava-se às massas com o propósito de "libertar" a mulher, o que implicava enterrar os seus papéis clássicos de subjugação falocêntrica.

As grilhetas femininas não estavam apenas em casa: na humilhação de cozinhar para o homem, de criar os seus filhos e de suportar as suas "violações" regulares no leito conjugal (obrigado, Andrea Dworkin).

A libertação implicava também que a mulher deixasse de ser objeto sexual; deixasse de ser "coisa", "carne", "corpo" e passasse a ser "pessoa". A luta contra a indústria pornográfica, por exemplo, foi um "must" do movimento, sobretudo nos Estados Unidos, e muitas vezes uniu as "revolucionárias" do movimento feminista com a extrema direita religiosa mais reacionária. Ironias da história. Ironias que a notável escritora Camille Paglia sublinhou em textos críticos sobre a condição feminina.

Para Paglia, o movimento feminista, longe de defender a "libertação" das mulheres, apenas pretendia substituir uma forma de autoritarismo por outra. Paglia não nega as provações que as mulheres experimentaram durante grande parte da história. Mas Paglia, ao contrário de Dworkin e suas vestais, entendia que a verdadeira libertação não passava por um novo catálogo de proibições. Passava por dar às mulheres o que estas não tinham anteriormente: escolha e poder. Ou, em linguagem prosaica, se uma mulher deseja ser "coisa", "carne", "corpo", isso não a diminui enquanto "pessoa". Pelo contrário: é uma poderosa manifestação de autonomia e, no limite, de domínio sobre aquele que a deseja. Liberdade não é impor um único padrão de comportamento. Liberdade é, precisamente, não impor nenhum.

Proibir o comercial de Paris Hilton em nome da "dignidade das mulheres" é, tão simplesmente, um insulto às mulheres. Um insulto à capacidade destas para decidirem ser o que entenderem: santas, prostitutas, ou nenhuma delas. Para o insulto ser perfeito, só faltava que o governo brasileiro liberasse o comercial sob a condição de Paris Hilton usar burca da cabeça aos pés. Não riam. Brasília está longe de Teerã, sim. Mas o espírito é o mesmo.