terça-feira, 2 de março de 2010

De Paris às praias

por Ursula Rösele

Brasil, país tropical, praia e tal. Cerveja = loira, gelada, refrescante e tal. Nós temos mais morenas aqui, mas ok, não temos a tradição de beber tanta cerveja escura e bem, cerveja escura não combina com sol e biquinis. Daí surge uma loira, dessas que estão nos tablóides com certa constância geralmente abusando do excesso de grana vindo de berço, com atitudes pra lá de reprimíveis, “devassas”. A loira vem pro carnaval no Rio, se depara com uma pista enorme na qual mulheres de corpos esculturais desfilam coloridas, com fantasias que variam de grandes saias e paetês a basicamente nada. Uma purpurinazinha pra tapar as “partes”, como a esposa de Hans Donner tantas vezes exibiu em horários nobres na nossa “nobre” emissora de TV. A loira, certamente muito bem paga, com uma grana que ela nem bem precisava, foi convidada a exibir sua magreza num vestido preto enquanto se delicia com uma lata de cerveja Devassa. O prazer que ela sente é pela nossa “loira” mais famosa, creio eu.

Pesquisando rapidamente na internet, encontrei três de nossas marcas que se deliciam com as paixões nacionais, levemente despidas, mas com a clara desculpa de estarem na praia, como bem disse o cronista da Folha, João Pereira Coutinho (texto reproduzido abaixo). Lá pode, claro. Paris Hilton, a devassa americana não tem o direito de pisar em solo nacional e insinuar o que nossas mulheres já escancararam tantas vezes, é um justificadíssimo assombro.

Imaginem só, a loira Hilton recebendo a notícia de que seu comercial foi proibido no país. Ela vai à sua memória recobrar os momentos que teve aqui e do quê se lembra? Da tal grande pista e dos seios à mostra sendo vangloriados pelas mesmas carolas e autorregulamentações que sintonizaram suas TVs – isso quando não compraram espaços nos camarotes de nossas cervejas pudicas – no Carnaval 2010. Hipocrisia pouca é bobagem...

SKOL



BRAHMA



NOVA SCHIN



A DEVASSA PARIS



Santas e prostitutas, por João Pereira Coutinho
(Folha de S.Paulo, 2 de março de 2010)

Censurar Paris Hilton é um gesto honroso e até higiênico: na sua vulgaridade plástica, Paris Hilton é um insulto à beleza natural das mulheres brasileiras. Fosse eu presidente da República e jamais Paris Hilton poderia estrelar em comercial televisivo. Seria como convidar um futebolista californiano para jogar na seleção canarinho.

Acontece que o governo brasileiro não censurou Paris por motivos patrióticos, ou até estéticos, o que seria compreensível. Censurou por motivos éticos. Eis a história: Paris foi convidada para fazer campanha publicitária de uma cerveja. O filme mostra Paris, em hotel carioca, colada à janela do quarto, passando a lata da bebida pelo corpo. Simula prazer.

Cá fora, o mundo simula delírio. Um rapaz, versão moderna e ridícula de James Stewart em "Janela Indiscreta", fotografa a lata, não Paris, com verdadeiro fervor alcoólico. Na praia, a multidão aplaude o espetáculo e bebe em homenagem. A Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres não gostou. Eu também não gosto de uma secretaria com esse nome, mas divago. A juntar ao repúdio governamental, alguns consumidores também se sentiram chocados com a indecência de Paris. E o Conselho de Autorregulamentação Publicitária abriu três processos pela manifesta imoralidade do comercial.

Uma coisa é ter mulheres na praia, seminuas, bebendo vários barris de cerveja. Outra, bem diferente, é ter uma mulher de vestido negro, na janela de um quarto de hotel, com uma lata de cerveja na mão. Para os moralistas da cerveja, na praia vale tudo. No quarto, não vale nada. E quando surge uma imagem demoníaca dessas, a solução é proibir. Na cabeça deles, a imagem degrada as mulheres e, em especial, a mulher loira, universalmente considerada a versão feminina de Forrest Gump.

Não vale a pena perder tempo com a profunda contradição do raciocínio: a sexualização onipresente na cultura popular brasileira faz de Paris Hilton um hino à castidade. Mas vale a pena perder tempo com a natureza paternalista de um governo que ressuscita os piores clichês do feminismo rasteiro para defender a sua dama.

O que nos disse o movimento feminista que explodiu pelo mundo depois da Segunda Guerra? Não é possível resumir em poucas frases a multiplicidade de argumentos e até de movimentos que marcharam pela causa. Mas, simplificando, o feminismo apresentava-se às massas com o propósito de "libertar" a mulher, o que implicava enterrar os seus papéis clássicos de subjugação falocêntrica.

As grilhetas femininas não estavam apenas em casa: na humilhação de cozinhar para o homem, de criar os seus filhos e de suportar as suas "violações" regulares no leito conjugal (obrigado, Andrea Dworkin).

A libertação implicava também que a mulher deixasse de ser objeto sexual; deixasse de ser "coisa", "carne", "corpo" e passasse a ser "pessoa". A luta contra a indústria pornográfica, por exemplo, foi um "must" do movimento, sobretudo nos Estados Unidos, e muitas vezes uniu as "revolucionárias" do movimento feminista com a extrema direita religiosa mais reacionária. Ironias da história. Ironias que a notável escritora Camille Paglia sublinhou em textos críticos sobre a condição feminina.

Para Paglia, o movimento feminista, longe de defender a "libertação" das mulheres, apenas pretendia substituir uma forma de autoritarismo por outra. Paglia não nega as provações que as mulheres experimentaram durante grande parte da história. Mas Paglia, ao contrário de Dworkin e suas vestais, entendia que a verdadeira libertação não passava por um novo catálogo de proibições. Passava por dar às mulheres o que estas não tinham anteriormente: escolha e poder. Ou, em linguagem prosaica, se uma mulher deseja ser "coisa", "carne", "corpo", isso não a diminui enquanto "pessoa". Pelo contrário: é uma poderosa manifestação de autonomia e, no limite, de domínio sobre aquele que a deseja. Liberdade não é impor um único padrão de comportamento. Liberdade é, precisamente, não impor nenhum.

Proibir o comercial de Paris Hilton em nome da "dignidade das mulheres" é, tão simplesmente, um insulto às mulheres. Um insulto à capacidade destas para decidirem ser o que entenderem: santas, prostitutas, ou nenhuma delas. Para o insulto ser perfeito, só faltava que o governo brasileiro liberasse o comercial sob a condição de Paris Hilton usar burca da cabeça aos pés. Não riam. Brasília está longe de Teerã, sim. Mas o espírito é o mesmo.

2 comentários:

Rafael Ciccarini disse...

Como diz o Nísio: "e vai piorar". Proibiram também a versão de 30 segundos, que estava sendo exibida.

Leo Cunha disse...

Putz, eu estava em outro mundo. Nem ouvi falar dessa história. Só fui ver a propaganda aqui. Aliás, muito boa.
E, se bobear a cerveja é gostosa também.