segunda-feira, 17 de maio de 2010

"Aurora", Puiu e o cinema romeno


por Marcelo Miranda

Em 2005, a pequena produção romena "A Morte do sr. Lazarescu" venceu o prêmio principal da mostra paralela Um Certo Olhar, no Festival de Cannes. Porém, seu diretor, Cristi Puiu, precisou ir embora antes: durante o evento francês, ele recebera a notícia de que seu pai havia morrido. Cinco anos depois, Puiu volta à Croisette com o trabalho seguinte, "Aurora". Minutos antes de me conceder uma entrevista exclusiva, o assessor de Puiu comunica: o diretor teve que sair às pressas por "problemas de saúde com o filho". O mais curioso disso tudo é que ambos os filmes de Puiu lidam com mortes ou doenças.

Felizmente, o mesmo assessor do mau agouro entregou um material bastante completo contendo várias respostas do diretor a respeito das questões que seriam feitas em torno de "Aurora", exibido no final da semana, na edição 2010 da mesma mostra Um Certo Olhar que o premiou anos atrás. Quando "A Morte do sr. Lazarescu" foi aclamado, a maior queixa da imprensa no festival era entender por que o filme não estivera na competição à Palma de Ouro - o que lhe daria chances genuínas de vencer no ano em que o irregular inglês "Ventos da Liberdade", de Ken Loach, foi agraciado.

A "pressão" dos jornalistas em 2005 não foi suficiente para o novo Puiu entrar na competição deste ano. "Aurora" é uma experiência ainda mais radical que "A Morte do sr. Lazarescu"; somada às suas três horas de duração, deve ter sido complicado inseri-lo dentro da apertada grade do festival. A única sessão na sala Debussy, na última sexta-feira, estava lotada. Ao fim, a plateia reagiu friamente ao mergulho de Puiu no cotidiano de um homem que mata pessoas. Entrar nos detalhes do enredo de "Aurora" não faria justiça ao efeito perturbador de assisti-lo.

O projeto nasceu a partir de um programa de TV sobre assassinos, ao qual Puiu assistiu na TV romena. "O que me afetou foi saber que a maior parte dos crimes de morte são perpetrados num círculo de pessoas que se conhecem: pais, amigos, colegas de trabalho, vizinhos", diz Puiu.

Em "Aurora", o próprio Cristi Puiu interpreta o personagem central. Aos 42 anos, metalúrgico, recém-divorciado, pai de duas filhas, Viorel é a imagem do homem simples de um país subdesenvolvido. Certo dia ele acorda, vai ao trabalho, caminha por Bucareste (capital romena), compra equipamentos para montar um rifle. Puiu acompanha o passo a passo de Viorel com total detalhamento e paciência. Somente com uma hora de projeção o filme começa a dizer a que veio. Até ali, o espectador já deverá ter mergulhado na interação de Viorel com o ambiente que o cerca - e, mais que isso, estará estranhamente tenso ao tentar decifrar os motivos que fazem aquela figura se preparar para alguma coisa sobre a qual não sabemos absolutamente nada.

"De que forma confrontar a experiência de tirar a vida de outro ser humano tendo por base a nossa experiência de nunca ter matado alguém?", questiona Puiu, a respeito de suas intenções em "Aurora". "Eu quis evitar qualquer tipo de clichê que desse ao ato de matar, no filme, algum viés extraordinário".

A visão seca do filme de Puiu dialoga com trabalhos similares e de universos audiovisuais bem distintos, como o norte-americano "Na Mira da Morte" (1968), de Peter Bogdanovich, e o polonês "Não Matarás" (1988), de Krzysztof Kieslowski - além de uma inspiração óbvia, ainda que aparentemente não assumida: o colossal romance "Crime e Castigo" (1886), de Dostoiévski. "Acho que existe alguma coisa no mundo que nos faz eliminarmos uns aos outros", completa Puiu. "Estamos sempre lutando contra os nossos pensamentos, e o cérebro tem reações mecânicas para controlar os instintos. Mas o mundo que existe na nossa cabeça pode acabar provocando tragédias".

Como em “Aurora”, Cristi Puiu fez em “A Morte do sr. Lazarescu” o desenvolvimento de uma catástrofe íntima. O martírio de um idoso doente procurando vaga em hospitais de Bucareste chocou e encantou plateias dos festivais onde foi exibido. É um dos filmes mais fortes, intensos, políticos e memoráveis do cinema contemporâneo. Ainda assim (ou talvez por isso,) permanece inédito no circuito comercial.

“Lazarescu” abriu caminho para vários outros filmes romenos nascerem em Cannes ao longo dos últimos cinco anos, tendo seu auge em 2006, quando “4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias” saiu carregando a Palma de Ouro. Na edição 2010, não apenas “Aurora” marca presença. “Marti, Dupa Cracium” (ou “terça, depois do Natal”, em tradução livre), de Radu Muntean, teve exibição também na mostra Um Certo Olhar, a mesma de “Aurora”. De um país pobre da Europa Oriental, com 22 milhões de habitantes, vem uma das filmografias mais expressivas dos tempos atuais.
*Originalmente publicado em O TEMPO no dia 17.5.2010

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