sexta-feira, 14 de maio de 2010

Manoel encanta em Cannes

por Marcelo Miranda

Definitivamente, não existe um cineasta chamado Manoel de Oliveira. Existe um fenômeno intitulado Manoel de Oliveira. Esse senhor português de 101 anos de idade insiste em maravilhar nossos olhos, ouvidos e sensibilidades fazendo um grande filme atrás de outro - quase literalmente com a periodicidade anual de suas produções desde quando ele completou seus juvenis 80 anos.

Em 2009, ele mostrou no Festival de Berlim "Singularidades de uma Rapariga Loura", verdadeira pepita de ouro ainda inédita no circuito brasileiro. No 63º Festival de Cannes, ontem, Manoel apareceu com outro objeto esquisito e maravilhoso. "O Estranho Caso de Angélica" teve exibição na mostra paralela Um Certo Olhar, em sessão de abertura. É um projeto antigo do cineasta, escrito em 1952, quando ele pretendia narrar o drama de um personagem judeu que sobrevivera ao genocídio nazista.

Quase seis décadas depois, o fotógrafo Isaac (vivido por Ricardo Trêpa, neto de Manoel) deixou de ser refugiado, mas mantém a orientação judaica. "Muitos judeus fugiram para a Espanha e Portugal e, depois, vários seguiram para a América. Tirei do roteiro a referência à guerra porque muito tempo se passou, e até mesmo o Douro (cidade onde a história se ambienta) está muito diferente", disse o cineasta.

Manoel apareceu na coletiva de imprensa com seu tipo habitual: sorriso, chapéu, vivacidade. Durante algumas respostas, pareceu confuso. Talvez fosse por estar falando em francês a uma plateia de repórteres estrangeiros. "Acho que ele está envelhecendo" foi uma frase-brincadeira corrente entre quem se encantou com a disposição do português.

"O Estranho Caso de Angélica" conta as angústias de Isaac a partir do momento em que, chamado com urgência para fotografar uma jovem recentemente falecida, vê a moça sorrir para ele através da lente de sua câmera. A partir daí, numa mistura de drama romântico, filme de fantasma e discurso político, o diretor desfia uma teia de diálogos, encenações e relações passionais como só ele faz. Aliás, outro fato sempre importante de ser registrado: um filme com direção de Manoel de Oliveira não se parece com absolutamente nenhum outro objeto artístico. Só mesmo com algum filme de Manoel.

Por entrar em dimensões metafísicas (algo já presente em projetos anteriores do cineasta, como "Os Canibais"), Manoel precisou responder a várias perguntas sobre fé, religião e morte. "Morrer é uma condição absoluta. Quando nascemos, só estamos certos de que vamos morrer", afirmou. "Não tenho medo da morte. Tenho muito medo é de sofrer".

No filme, o fotógrafo Isaac tem visões da garota falecida e passa a procurar respostas sobre o que lhe acontece. Manoel, por sua vez, garantiu: "Nunca passei por esse tipo de experiência. Não sabemos o que vem depois da morte, e esse é o maior segredo".

Até pela noção de filmar o infilmável (a representação da morte), Manoel de Oliveira aproveitou para diferenciar o cinema do teatro - duas artes sempre relacionadas a seus filmes, assim como a literatura. "O teatro é mais honesto que o cinema, porque os filmes transformam pensamentos em sonhos, enquanto, num palco, isso não acontece, por ser uma arte realista, sem intermediação de uma câmera".

Claramente apaixonado pela arte em geral, Manoel frisou o que sempre gosta de fazer: o que significa o cinema. "É o realismo, é o fantástico, é o cômico. Não precisa acrescentar mais nada a isso".

*Originalmente publicado em O TEMPO no dia 14.5.2010

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