quarta-feira, 19 de maio de 2010

Copie Conforme, Kiarostami e Binoche

por Marcelo Miranda

Juliette Binoche foi às lágrimas durante encontro com a imprensa mundial no começo da tarde de ontem, em Cannes. Na Riviera Francesa para exibir o novo filme no qual é protagonista, "Copie Conforme", do iraniano Abbas Kiarostami, a atriz francesa não conteve a emoção ao ser informada, durante a coletiva, que o diretor Jafar Panahi, preso desde março no Irã por supostamente defender ideias contrárias ao regime local, teria começado uma greve de fome.

Quase a metade da entrevista com Kiarostami e Binoche girou em torno de Panahi. O próprio diretor, antes mesmo de ouvir qualquer pergunta, adiantou: "Sei que viemos aqui para falar do nosso filme, mas me deem apenas um minuto que eu pretendo comentar uma grande injustiça e violência", alertou. "Já devem saber que estou falando de Jafar Panahi. Quando vinha para cá, recebi recado de que a esposa dele queria falar comigo. Espero boas notícias".

Em seguida, Kiarostami foi desiludido: uma repórter francesa pediu a palavra e disse que a novidade era que Panahi iniciaria greve de fome. Nesse momento, Binoche, entristecida desde quando entrara na sala de conferências, começou a chorar, gesticulando para que os fotógrafos se afastassem, e recebendo um lenço da organização.

"Um cineasta preso por fazer seu trabalho é uma coisa intolerável. Filmar não pode nunca ser considerado um crime", frisou Kiarostami. "No Irã, os diretores independentes sempre vivem esse drama: se o governo não gosta do filme ou fica sabendo de alguma repercussão no exterior, logo pensa que tem algo a ver com os ocidentais", denunciou.

Enfim, sobre "Copie Conforme" (ou "cópia autenticada", em tradução livre), Kiarostami deu verdadeira aula de cinema. Não apenas com o filme em si, excelente, mas com cada uma de suas palavras sobre ele. "Eu queria colocar em cena duas pessoas discutindo relações de amor, fosse verdade ou mentira. Mas isso era pretexto para questões bem mais complexas que me interessavam", disse.

Em "Copie Conforme", Kiarostami muda completamente o tom de seu cinema. Ganhador da Palma de Ouro em Cannes com "Gosto de Cereja" (1997), o iraniano sempre foi adepto de filmes mergulhados na realidade pobre de seu país e em figuras anônimas (não-atores selecionados nas próprias locações) tentando sobreviver, como em "Onde Fica a Casa do Meu Amigo?" (1987) e "O Vento nos Levará" (1999). Na última década, o diretor mergulhou em verdadeiros experimentos, casos de "Dez" (2002), "Five" (2005) e "Shirin" (2008), nos quais Kiarostami ambicionava "desaparecer" com o ofício de diretor, tentando fazer filmes que nascessem no contato câmera-objeto/rosto.

Eis que Kiarostami surge neste ano com um aparente romance protagonizado por uma estrela do cinema europeu (Juliette Binoche) e um cantor de ópera inglês (William Shimell), que circulam pela Toscana, na Itália, discutindo aspectos do amor, da arte, da vida e da atração homem-mulher. Em meio à construção crescente e surpreendente, mesclando diálogos em inglês, francês e italiano, e captando a ambientação por onde o casal transita, brota de "Copie Conforme" um drama de relacionamento como poucas vezes se assiste. Binoche está num papel que é presente a qualquer grande atriz, e o qual a francesa agarra com fervor.

Mantendo a postura autoral, "Copie Conforme" põe em questão encenação, construção, representação, arte: é aí que se percebe estarmos, de fato, no mundo de Kiarostami (um mundo paralelo, mas ainda o dele); todo o peculiar encaminhamento do longa e a forma estética que o diretor lhe dá engrandecem a experiência da projeção - e a tornam tão encantadora quanto perturbadora. "Esse filme é tão misterioso a mim quanto o é para vocês", disse Binoche.

"Sempre me envolvi com meus personagens porque eles são parte de mim", afirmou Kiarostami. "Claro que sou aquele homem, mas sou também a mulher e o filho dela. São todos nascidos do meu interior, e é essa relação que eu crio com os filmes que faço".

A vontade de fazer o filme surgiu fortemente quando Abbas Kiarostami soube do interesse de Juliette Binoche em trabalhar com ele. “Vi uma entrevista na qual perguntavam se ela queria ir fazer filmes em Hollywood; a resposta foi que ela queria filmar comigo”, lembrou. Ao lado do diretor, Binoche confirmou e disse ter ido visitar o Irã para saber sobre a vida das mulheres no país.

Ao receber o roteiro com informações de sua personagem, Binoche ficou perplexa. “Ela parecia uma louca”, afirmou, aos risos. “Fui logo pesquisar na internet em busca de mulheres que fossem neuróticas, mas Abbas me disse: seja você mesma. Foi quando entendi que qualquer mulher poderia ser como aquela personagem, que tenta inventar outra existência para si mesma”.

Aos 46 anos, Binoche está em grande fase autoral desde 2005. De lá até aqui, filmou com o austríaco Michael Haneke (“Caché”), o chinês Hou Hsiao-Hsien (“A Viagem do Balão Vermelho”), o israelense Amos Gitai (“Aproximação”), o francês Olivier Assayas (“Horas de Verão”) e anunciou projetos com outros dois cineastas da China, Jia Zhang-ke e Jiang Wen.

*Originalmente publicado em O TEMPO no dia 19.5.2010

Um comentário:

Lu disse...

Ajeita lá em coberturas: "Fesitval" de Cannes 2010. :)