sábado, 3 de abril de 2010

Ely Azeredo e a crítica de cinema



por Marcelo Miranda


Ele é o crítico de cinema com mais anos de atuação no Brasil. O primeiro texto profissional do carioca Ely Azeredo data de 1953, há exatos 56 anos. Por "proporcionar um número redondo", segundo o próprio, Ely reuniu artigos seus publicados até 2003 no livro "Olhar Crítico - 50 Anos de Cinema Brasileiro" (Instituto Moreira Salles, 416 págs, R$ 54).

De um acervo de aproximadamente 5.500 textos, entre críticas, reportagens e entrevistas, Ely Azeredo selecionou 98 reflexões exclusivamente sobre filmes produzidos no país, indo de "Sinfonia Amazônica" (1952), de Anélio Latini Filho, a "Carandiru" (2003), de Hector Babenco - e passando, obviamente, pelo controverso período do Cinema Novo, do qual Ely cunhou o termo que eternizou o movimento e, ironicamente, foi um de seus mais firmes questionadores.
Confira entrevista.

Fora o recorte específico no cinema brasileiro, houve algum outro critério para escolher o que entrar em "Olhar Crítico"?
Tive também o desejo de expor o processo de maturação de um crítico. De propósito, deixei visíveis certas insuficiências de minha iniciação na prática profissional, lá por 1953, 1954. Em parte por tal motivo, o livro começa com críticas de 2002, 2003. Por exemplo: minha visão do cinema de Nelson Pereira dos Santos (minha admiração cresceu com o tempo) sofreu mudanças. A seleção inclui críticas maiores e mais reflexivas, e resenhas, mas também pequenos ensaios. Há nítidas diferenças na maneira de desenvolver certos textos, porque a seleção abrange escritos para colunas de resenhas, páginas especiais dominicais e periódicos. Como escrevi para mais de 20 veículos (entre jornais e revistas), acho que a amostragem pode ser especialmente útil a estudantes de comunicação. "Olhar Crítico" se organiza em ordem cronológica decrescente, definida pelo senhor como uma "viagem no tempo". Observando textos de 2003 a 1953, o leitor terá "contato" com o crítico da última década e com o mesmo em etapas anteriores de uma vida inteira de observação do cinema. Com essa cronologia, abro uma janela para o estágio do cinema brasileiro da década de 2000 e para outras fases de sua história. Claro que cada leitor tem a liberdade de elaborar seu roteiro preferencial.

Na introdução, o senhor aponta a importância do jornalismo e da crítica como propulsores de importantes movimentos do cinema. Como enxerga a crítica há 50 anos em relação à praticada hoje?
Na passagem dos anos 40 para os 50, a crítica se profissionalizou. Isso se tornou possível a partir do sucesso conquistado por Moniz Vianna no "Correio da Manhã", em 1946, quando esse era o mais influente diário do país. Embora estreante no jornalismo, Moniz ganhou algo que até então era impensável: uma coluna diária exclusivamente de crítica de cinema. No país, era muito baixo o número de jornais com colunas especializadas. A partir do hábito de leitura de críticas implantado por Moniz Vianna, publicar análises de filmes se tornou quase tão obrigatório como apresentar comentários sobre futebol.

E isso foi importante no desenvolvimento dos próprios movimentos culturais?
Nos anos 50 e 60, a crítica deu origem às cinematecas de São Paulo e do Rio. E criou uma série de cineclubes. Como criador e programador dos primeiros Cinemas de Arte (com Alberto Shatovsky), no Rio, em 1949/1960, eu "intervi" diretamente no cardápio - transformando Ingmar Bergman (principal exemplo) em programa "obrigatório" para os cinéfilos. O conjunto dessa atuação contribuiu para a formação de plateias atentas e informadas. Daí o surgimento de um público mais sofisticado, capaz de apreciar o cinema como arte. Essa crítica e esse público deram viabilidade ao moderno cinema brasileiro.

Como o senhor definiria a crítica e sua importância para a arte?
A crítica é a mediadora entre os cineastas e as plateias. Introduz a reflexão no ciclo vital das produções. O pensamento crítico que se oferece ao espectador completa o ciclo iniciado quando se reuniu uma equipe para dar forma audiovisual ao roteiro escrito.

Outro fator bem apontado na sua introdução é o fim da reflexão na mídia impressa por questões de espaço e desinteresse dos veículos. Porém, nos últimos dez ou 15 anos, testemunhamos a ascensão da crítica na internet. O senhor acompanhou esse "deslocamento"?
Acho que a "crítica de papel", com espaço fixo e frequente na imprensa, ainda é o melhor instrumento para a informação e formação de plateias. Mas, hoje, a disponibilidade de espaços generosos na internet é de grande importância, até pelos benefícios da interatividade. Nos anos 50, tentando um contato mais direto com os leitores, eu mantive, durante algum tempo, um horário de atendimento ao telefone na "Tribuna da Imprensa".

O senhor segue acompanhando o cinema brasileiro? Qual a sua visão do que tem sido produzido atualmente? Com o tempo exigido por outros projetos, não acompanhei muito o cinema (e não só o brasileiro) de 2004 para cá. Tenho muita estima pelo cinema de Walter Salles. "Central do Brasil" está entre meus favoritos. Na última década, destaco especialmente "Cidade de Deus", "Lavoura Arcaica", "O Invasor", "O Cheiro do Ralo", "Santiago", "Ônibus 174". E o trabalho nunca suficientemente exaltado de atores como Lázaro Ramos, Matheus Nachtergaele e Selton Mello.

Junto com Moniz Vianna, no Rio, e com Cyro Siqueira, em Minas, o senhor talvez seja o principal nome a problematizar os caminhos tomados pelo Cinema Novo. Em seu livro, no texto sobre “O Amuleto de Ogum”, lê-se: “Ao contrário de tantos filmes do Cinema Novo, este não é uma ‘armação’ do autor-diretor contra os personagens, nem uma contestação formal, nem uma defesa de tese”. Pergunto: a sua visão sobre o Cinema Novo permanece a mesma?
Ao contrário de muitos filmes cinemanovistas, “O Amuleto de Ogum” buscava comunicação com o “grande público”, desenvolvia seus personagens sem grilhões ideológicos e, nessa obra, Nelson Pereira dos Santos ficava longe do “culto da personalidade” (do diretor) que prejudicava muito a aceitação do Cinema Novo. A leitura de “Olhar Crítico” evidencia certa evolução em minhas análises dos filmes desse movimento. Os cinemanovistas também mudaram sua relação com a dramaturgia e com o público. Em meu livro, realço esse câmbio ao falar sobre filmes como “Macunaíma”, “Memórias do Cárcere”, “Imagens do Inconsciente” e outros. O Cinema Novo, fenômeno dos anos 60, original, às vezes caótico, narcisista ou “mensageiro”, vai deixando de existir à medida que progride a década de 70. Em consequência, a arte do ator ganha mais relevo. Os roteiros ganham mais estrutura. Em tempo: minha posição em relação ao cinema brasileiro era inteiramente diversa do enfoque de Moniz Vianna. Esse grande crítico raramente reconheceu algum mérito em filmes nacionais.

Após o Cinema Novo, veio o Cinema Marginal.
“A Margem”, de Ozualdo Candeias, a meu ver, indica um rumo autêntico ao chamado Cinema Marginal. Surgida como reação ao Cinema Novo, essa tendência também sofreu com o narcisismo de alguns realizadores. A maioria desses filmes tinha uma postura que distanciava o público. Acho que quase toda essa vertente perdeu o interesse, com raras exceções,como “O Bandido da Luz Vermelha”.

Gostaria que o senhor comentasse sua breve participação na “Revista de Cinema”, editada pelo Centro de Estudos Cinematográficos de Belo Horizonte nos anos 50.
Gostava tanto (da revista) que a levava pessoalmente para pontos de venda no Rio. Não tenho mais a coleção, mas não esqueço os excelentes textos sobre o método crítico, o realismo, a visceralidade da violência no grande cinema norte-americano. Na “Revista de Cinema” só publiquei dois textos modestos: um artigo sobre Bergman e uma crítica do bergmaniano “Noites de Circo”. A saída de Cyro Siqueira [um dos fundadores e editores da publicação] da crítica foi uma grande perda.

Publicado originalmente em O TEMPO no dia 23.3.2010

Um comentário:

André Setaro disse...

Ely Azeredo, sobre ser um dos grandes críticos de cinema da geração passada, não era, contudo, nas décadas de 60 e 70, uma unanimidade, quando escrevia no 'Jornal do Brasil', então o melhor jornal do país. Os cinemanovistas 'xiitas' não gostavam dele, preferindo José Carlos Avellar, que também escrevia no mesmo veículo. Havia, por assim dizer, os 'azeredistas' e os 'avellistas'. Apesar de reconhecer o 'background' e a cultura fílmica de Avellar, sempre preferi Ely Azeredo. Uma vez, Paulo Francis disse que nunca leu uma crítica de cinema tão bem escrita como a de Ely Azeredo.

Ely Azeredo é, talvez, o 'último dos moicanos' de uma grande fase da crítica cinematográfica no Brasil, quando pontificavam nomes como os de Paulo Emílio Salles Gomes, Francisco Luiz de Almeida Salles, Antonio Moniz Vianna, José Lino Grunewald, Sérgio Augusto, Rubem Biáfora, Walter da Silveira, Cyro Siqueira, Maurício Gomes Leite, Alex Viany, Rubem Biáfora, P.F. Gastal etc.

O 'Jornal do Brasil', toda sexta, tinha um Conselho de Cinema, que reunia quase dez críticos, quando era escolhido um filme importante da semana para que todos fizessem suas apreciações. Quando do lançamento, em 1969, de 'O dragão da maldade contra o santo guerreiro', Ely Azeredo 'salpicou' no quadro das cotações, uma 'bola preta'.