por Marcelo Miranda
Era 1967 quando "O Caso dos Irmãos Naves" estreou nos cinemas brasileiros. A ditadura estava em curso, ainda que a tortura só fosse ser institucionalizada um ano depois, com o AI-5. Em seu filme, o cineasta paulista Luiz Sérgio Person (1936-1976) mostrava um erro judiciário ocorrido em Araguari (no norte do Triângulo Mineiro, a 586 Km de Belo Horizonte). No centro do drama real, um delegado de polícia infligia os mais dolorosos maus-tratos para arrancar dos irmãos Joaquim e Sebastião a confissão de um crime que nunca existiu. Os fatos se deram a partir de 1937, ano da imposição do Estado Novo, regime de Getúlio Vargas. Mas Person fez um dos filmes políticos mais contundentes e contemporâneos que se podia ter notícia naquele momento conturbado para o país.
A versão em DVD de "O Caso dos Irmãos Naves" acaba de chegar às locadoras, em boa edição da distribuidora Videofilmes. Já era hora de se resgatar este trabalho raro, ainda de uma expressividade que o distingue da produção tradicional brasileira. Muito disso se deve à opção de Person em reconstituir quase literalmente os acontecimentos em Araguari. Numa entrevista ao jornalista Ely Azeredo em 1966, diz o diretor: "Nosso desejo era, objetivamente, dar ao espectador o resultado de uma reflexão em torno de fatos e documentos reais. (...) Queríamos um filme seco, simples e direto, sem heróis, mas, ao mesmo tempo, de ideias, de comunicação, de um calor humano (...)".
A proposta se diferenciava radicalmente do filme anterior de Person e sua estreia em longa-metragem, "São Paulo S.A" (1965) - no qual Walmor Chagas circulava pela opressão urbana em constante fragmentação de seus próprios anseios materiais e psicológicos. Se, neste, Person emulava realizadores franceses da época (em especial Alain Resnais), em "O Caso dos Irmãos Naves", o cineasta se aproximava dos italianos, especialmente de filmes políticos de Francesco Rosi e Elio Petri.
"A referência maior de Os Naves é 'O Bandido Giuliano', do Rosi, que Person achava um dos maiores filmes da história", destaca o cineasta Carlos Reichenbach, ex-aluno de Person nos anos 60. "O curioso é que, numa revisão recente, ‘Giuliano’ me pareceu muito envelhecido, datado; ‘Os Naves’, não".
Parceiro de Person na roteirização do filme, o crítico e ensaísta Jean-Claude Bernardet relembra que havia, desde o princípio do projeto, a intenção de retratar o martírio dos Naves com o maior rigor e distanciamento crítico possível - o que jamais significou indiferença. "O ponto de partida foi um recorte que o Person tinha guardado da revista ‘O Cruzeiro’, datado de 1949, narrando os acontecimentos envolvendo os Naves", conta Bernardet, por telefone. "Ele ficou revoltado com aquilo, e foi essa revolta que o levou a fazer o filme".
O roteirista confirma haver também a intenção de se referir às agruras políticas brasileiras pós-1964. "Tínhamos muita consciência de estarmos falando de Araguari em 1937 e, ao mesmo tempo, do nosso presente, de uma polícia que tortura, de uma justiça oprimida".
Temendo possíveis retaliações da censura, Bernardet e Person se cercaram do máximo de fidelidade sobre o que narravam, para evitar questionamentos da veracidade dos fatos. "Fiz uma ampla pesquisa do caso e mantive um fichário com todas as referências dos documentos originais, inclusive relativos à tortura e aos diálogos. O material de base do filme era absolutamente autêntico e idêntico ao que constava nas páginas do processo", afirma Bernardet.
Causos.
O rigor alcançado por Luiz Sérgio Person na estética de “O Caso dos Irmãos Naves” teve como reforço a decisão do cineasta de filmar nas mesmas locações onde os fatos se deram. Portanto, Person e equipe embarcaram para Araguari, e lá ficaram por três meses.
Juca de Oliveira, que estreou como ator de cinema no papel de Sebastião Naves, lembra-se empolgado do período no pequeno município mineiro, hoje com 115 mil habitantes. “Foi uma aventura das mais excepcionais que tive na minha carreira profissional”, exalta. “Peguei meu superfusquinha e dirigi até lá. Foi a oportunidade de conhecer intimamente o Person, figura de quem tenho tremenda saudade. Era um cineasta de alto gabarito, profundamente humano, agradável e incansavelmente trabalhador”.
O elenco principal do filme – que ainda incluía Raul Cortez, Anselmo Duarte e John Herbert – ficou hospedado numa casa. Entre uma filmagem e outra, o quartero aproveitava para se deleitar na cidade. “Eu e o Anselmo arrumamos até namoradas por lá. Ele, inclusive, namorou a Miss Araguari!”, diverte-se Juca.
Na hora de ir para o set, a brincadeira parava. Nas cenas exteriores, por exemplo, o perfeccionista Person apenas saía para filmar com céu nublado. “Se tivesse sol, ele não fazia”, diz Juca, sobre o tom de penumbra que paira em toda a duração do filme – bastante auxiliada pela fotografia de Oswaldo de Oliveira.
Person também exigia o melhor de seu elenco. Além de fazer Raul Cortez e Juca de Oliveira soarem autênticos nas cenas de tortura (“tinha porrada mesmo, não havia jeito de não ter”, diz Juca), o diretor bancou a presença de Anselmo Duarte, ex-galã dos estúdios Vera Cruz que morreu em novembro passado aos 89 anos.
Em baixa por conta de uma série de fracassos na sua carreira de diretor – mesmo tendo ganhado a Palma de Ouro em Cannes com “O Pagador de Promessas” em 1962 –, Duarte teve em “O Caso dos Irmãos Naves” a sua mais elogiada atuação. Ele encarna o delegado enviado a Araguari após a decretação do Estado Novo de Getúlio Vargas. Figura sádica, vilanesca, no limite entre o intimismo e o exagero, o personagem se tornou emblemático na cinematografia brasileira. “O Anselmo até parece mais moço em cena”, crê Juca. “Ele renasceu fazendo o filme”.
O diretor
Luiz Sérgio Person nasceu em fevereiro de 1936 e morreu num acidente de carro, em janeiro de 1976, aos 39 anos. Na sua breve carreira, ele dirigiu comerciais, curtas-metragens e importantes longas, como “São Paulo S.A”, “O Caso dos Irmãos Naves” e “Cassy Jones, o Magnífico Sedutor”, todos os três disponíveis em DVD no Brasil. Ainda inéditos essão “Panca de Valente” e “Um Marido Barra- Limpa”.
*Publicado originalmente em O TEMPO no dia 19.4.2010
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