segunda-feira, 5 de abril de 2010

"Mangue Negro" e o terror no cinema brasileiro



por Marcelo Miranda

Num vilarejo capixaba de pescadores, mortos-vivos de corpos putrefatos passam a caminhar pelo mangue e atacar violentamente os moradores locais. A certa altura, para salvar a garota que ama, um dos trabalhadores do lugar recorre a uma preta velha. Ela o orienta a arranjar veneno de baiacu para tentar curar a moça do avanço das criaturas, antes da jovem se transformar em um zumbi.

O enredo estapafúrdio se refere a "Mangue Negro", estreia de Rodrigo Aragão no longa-metragem. Exibido pela primeira vez em 2008 no Fantaspoa (festival de cinema fantástico realizado em Porto Alegre), é atualmente um fenômeno cult entre os amantes do gênero horror. Sem lançamento comercial nos cinemas brasileiros, o filme chega às locadoras nas próximas semanas, num DVD em bela edição dupla, a cargo da distribuidora London. Paralelamente, foi exibido em diversos países mundo afora (Inglaterra, Alemanha, Argentina, Chile e China - neste, faz sucesso avassalador em cópias piratas).

"Mangue Negro" tem ganhado elogios de público e parte da crítica, especialmente de quem se abre à imaginação de um realizador que, no interior do Espírito Santo, colocou para fora a sua paixão cinéfila via visceralidade do terror. "Fiz o filme para mim mesmo, com o que eu gostaria de ver numa produção brasileira de horror", comenta Aragão, em conversa com o Magazine. "É muito legal sentir a recepção e ler até intelectuais falando sobre ele".

Aos 33 anos, residente na comunidade do Perocão, a 8 Km do município de Guarapari (ES), Rodrigo Aragão nasceu e cresceu em meio ao manguezal da região. Daí ele propalar ter feito "Mangue Negro" literalmente no quintal de casa. "Desde criança brinquei nas raízes do mangue e sempre imaginei que ali poderiam existir monstros", relembra. "Achei que poderia transformar isso num filme e tentei pelos caminhos oficiais, mas nunca consegui apoio".

Em 2005, Aragão construiu um barraco de madeira atrás de sua casa, arranjou uma câmera emprestada e filmou dez minutos de uma história de zumbi. Mostrou a um amigo empresário de Belo Horizonte. "Ele gostou e topou ser produtor".

Com parco orçamento de R$ 60 mil, Aragão reuniu uma equipe de sete pessoas ("todo mundo fez de tudo"), juntou alguns atores e gastou três anos dando forma a "Mangue Negro". Suas maiores inspirações (explícitas na tela, aliás) eram "Náusea Total" (1987) e "Fome Animal" (1992), ambos de Peter Jackson; "Zombie - A Volta dos Mortos" (1979), de Lucio Fulci; e "A Morte do Demônio" (1981), de Sam Raimi.

O diretor - também roteirista, editor e responsável pela maquiagem e efeitos visuais do filme - buscou ainda referências bem específicas do Perocão. "Já disseram que, para ser universal, é preciso ser o mais regional possível", afirma.


O espectador acompanha as agruras dos dois protagonistas (vividos por Walderrama dos Santos e Kika de Oliveira) tentando sobreviver em meio aos ataques de zumbis e fugindo por paisagens pouco ou nada vistas no panorama contemporâneo do cinema brasileiro - rios poluídos, manguezais sombrios, casebres decadentes. "É um lugar em processo de deterioração, por causa da poluição e da depredação. Quis, de alguma forma, colocar isso no filme".

E se o Brasil não tem tradição de utilizar efeitos especiais na concepção de seus filmes, Rodrigo Aragão procurou ser bastante atento na hora de preparar os monstrengos de "Mangue Negro". Maquiador artístico profissional, Aragão revela que muito da vontade de fazer o longa se deveu a querer colocar em prática, no cinema, os conhecimentos da área. "Fui dirigir muito pela frustração de não ter onde aplicar meu trabalho", assume. "Comecei como técnico de efeitos em 1994, fazendo curtas-metragens e peças de teatro. A partir de 2000, me dediquei a um espetáculo de terror chamado ‘Mausoleum’. Atualmente dou cursos de efeitos visuais".

Apesar das dificuldades, Aragão é otimista quanto aos rumos dos filmes de terror brasileiros. "Nunca será um cinema de primeira linha por aqui. Se a pessoa não gosta, nada a convence do contrário. Mesmo assim, vejo alguns movimentos interessantes de realizadores". O próprio Aragão já se mobiliza. Prepara para 2011 o segundo longa, "A Noite do Chupacabra", a ser filmado nas montanhas capixabas. Depois, pretende fechar uma trilogia com um outro terror, em paisagens marítimas. Os fãs do gore aguardam.

A NÃO-TRADIÇÃO BRASILEIRA
No livro-ensaio “Da Natureza dos Monstros” (1998), o crítico, pesquisador e professor Luiz Nazario escreve uma definição para o que seriam os filmes de terror: “Dizem respeito, em última análise, à força dramática da aparência. Na tela, o sangue que escorre é artificial; as deformações e feridas são truques; o monstro existe pelo efeito de montagem, lentes de aumento, computação gráfica e mecanismos automáticos (...); as cidades reviradas são maquetes de papelão. A destruição é um gozo secreto”.

A descrição soa universal. A quantos filmes brasileiros ela se encaixaria? A “Mangue Negro”, certamente. Também à produção de José Mojica Marins, fundador do horror no cinema do país com “À Meia-Noite Levarei Sua Alma” (1964) e “Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver” (1966). Talvez um pouco de Ivan Cardoso, em “O Segredo da Múmia” (1982) e “Um Lobisomem na Amazônia” (2005). E não muito mais que isso.

“O gênero não encontra no Brasil condições adequadas para vingar”, afirma Nazario, em entrevista. “Não há tradição porque há pouca literatura fantástica entre nós: raros foram os escritores que se dedicaram a criar universos sombrios, seja na literatura de horror e de mistério, de ficção científica ou policial. Depois do romantismo e do simbolismo, onde autores como Álvares de Azevedo e Cruz e Souza ousaram criar alguns universos sombrios, a ditadura do realismo domina o Brasil”.

Para Nazario, mesmo o cinema de Mojica é limitado por “evidentes limitações culturais”. “Os filmes do Zé do Caixão situam-se naquele limbo onde também se encontra Ed Wood, entre o terror e a chanchada, com imagens meio assustadoras, meio ridículas”.


Marcelo Carrard, também pesquisador e especialista em cinema de horror, aponta alguma produção de temática fantástica no Brasil. “Claro que seu maior expoente é o mestre José Mojica Marins, mas outros diretores se aventuraram nessa área, como Walter Hugo Khouri, em ‘O Anjo da Noite’ e ‘As Filhas do Fogo’, e Jean Garret, em ‘A Força dos Sentidos’ e ‘Excitação’”, enumera.
Carrard acredita no potencial do Brasil de filmar lendas populares que pululam a todo canto. “Os estrangeiros adoram. Tanto veteranos como o Mojica até novos talentos, como Dennison Ramalho e Rodrigo Aragão, sabem explorar muito bem elementos culturais genuinamente brasileiros”. Luiz Nazario completa: “Os brasileiros poderiam criar obras-primas do gênero se estivessem inseridos nessa tradição cultural”.

O próprio Mojica compartilha da opinião. Aos 74 anos, segue como a grande referência no horror brasileiro, mas se ressente do gênero não ter representatividade contínua por aqui. “Tenho saído por esse Brasil afora e vejo muitos curtas-metragens legais de terror, mas, em longa, estamos devendo”, lamenta. “Nosso país tinha que ser o primeiro no gênero. Temos encruzilhada, misticismo, macumba, praia, mulher bonita. Não sei como nada disso é explorado. É o que o terror precisa”. Para ele, falta aos novos realizadores “mais atrevimento”. “Tem que se jogar. Eu paguei caro por tudo que fiz. Enfrentei ditadura e problemas na família por causa disso”.

MOJICA VAI FILMAR LENDA MINEIRA
Além de dois longas protagonizados pelo personagem Zé do Caixão nos anos 60, o diretor José Mojica Marins tem no currículo diversos outros longas de horror, alguns deles obras fundamentais do cinema brasileiro em sentido universal – casos do excepcional e ousado “Ritual dos Sádicos” (1970), censurado pelo regime militar, e de “Exorcismo Negro” (1974).

Após “Encarnação do Demônio”, lançado em 2008 – depois de um hiato de duas décadas sem que Mojica filmasse um longa-metragem –, o mítico diretor se prepara para voltar ao set. Deve fazer ainda este ano “Corpo Seco” (título provisório), inspirado em lenda homônima da cidade de Pouso Alegre, no Sul de Minas.

Reza a crença local que, no começo do século XX, o maléfico morador de um casarão do bairro Santo Antônio gostava de maltratar a mãe e os animais. Doente, definhou até morrer. Porém, seu corpo nunca se decompôs e passou a assombrar o lugar. No projeto de Mojica, será o coveiro Zé do Caixão quem irá enfrentar a vilania de Corpo Seco. “Vou tentar ultrapassar os limites dos próprios limites”, garante o cineasta. Ele prevê a estreia do filme para 2011.

Mojica se diz frustrado por não ter conseguido deixar discípulos onde ele foi o pioneiro. Aponta Dennison Ramalho – diretor do curta de horror “Amor só de Mãe” (2002) e um dos roteiristas de “Encarnação do Demônio” – como um realizador a quem ele dá total apoio “em qualquer coisa que quiser”. Mas puxa a orelha: “É todo mundo lento demais para fazer. Na minha época, eu não perdia nenhuma chance”.

*Originalmente publicado em O TEMPO no dia 4.4.2010

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