sábado, 3 de abril de 2010

Humberto Mauro por Ronaldo Werneck

por Marcelo Miranda

Poucos escreveram tanto sobre Humberto Mauro. O cataguasense Ronaldo Werneck, conterrâneo do "pai" do cinema brasileiro, tornou-se amigo do mestre nos anos 70. Ouviu centenas de histórias e reuniu essa produção em "Humberto Mauro Revisto por Ronaldo Werneck", livro lançado pela Arte Paubrasil, com patrocínio do programa Filme em Minas.

Fiz uma entrevista com o Ronaldo, que saiu parcialmente publicada em O TEMPO no dia 28.3.2010. Reproduzo abaixo a versão integral da conversa, pois o papo foi magnífico e vale a reprodução.


Mauro e Ronaldo em 1975, em foto de Clovis Scarpino

Como você definiria "Humberto Mauro revisto por Ronaldo Werneck"?
“Kiryrí Rendáua Toribóca Opé” é um livro que prioriza o afeto. O tempo de sossego e paz (“Kiryrí”) do cineasta em seu derradeiro set de filmagem, o Rancho Alegre (“Toribóca”). Um cantar de amigo, um grande poema épico multifacetado, entrecortado por imagens. Um livro em permanente movimento. Um ensaio que não se prende à cronologia, embora perpassado por momentos biográficos. Uma obra que narra fragmentariamente a saga e a seiva de sua primavera da vida: o “thesouro” da juventude reencontrado, o despertar da brasa dormida – a ganga bruta de onde Humberto Mauro extraiu o sangue mineiro e criativo, o alto teor de inventidade de seu cinema.

Quando e como se deu o seu primeiro contato com Mauro?
Sou de Cataguases, cidade onde HM realizou seus primeiros filmes na década de 1920. Ouvia falar de seu nome desde menino, mas nunca vira nada dele. Em 1961, antes dos 18 anos, assisti pela primeira vez a algumas de suas obras e o vi assim meio de longe no Festival Humberto Mauro realizado na cidade. Um Festival que levou muita gente de cinema a Cataguases, inclusive o jovem Glauber Rocha, que também assistiu ali, e pela primeira vez, como eu, aos filmes de Mauro. Entusiasmado, Glauber publicou logo a seguir no Jornal do Brasil grande matéria destacando a importância de Humberto Mauro para o então novíssimo Cinema Novo. Seis anos depois, conheci pessoalmente o cineasta, que voltou a Cataguases – ao lado do romancista Marques Rebelo e de escritores da Revista Verde – para a comemoração dos 90 anos da cidade, a convite dos jovens “poetas da vanguarda cataguasense”, eu inclusive. E desde então venho escrevendo/falando sobre Humberto Mauro: ensaios e entrevistas com ele para jornais, revistas, livros; depoimentos e entrevistas para programas de tevê e documentários cinematográficos.

Com o passar do tempo, acabamos amigos. Amizade que começou no início dos anos 1970. Eu morava no Rio e publiquei naquela época longo ensaio sobre o cineasta na Revista Vozes. Logo depois, sou surpreendido por um telefonema do próprio Mauro, que havia lido a matéria e me convidava a passar por Volta Grande, para “um café e um papo”. Não deu outra: indo do Rio para Cataguases, ou vice-versa, e sempre que possível, dava uma passada em Volta Grande para papos e mais papos. Foi quando realizei grande entrevista com Mauro para Totem, o Suplemento Literário que eu editava em Cataguases junto com o poeta Joaquim Branco.

Foi aí que nossa amizade se estreitou – no transcorrer dessa longa entrevista, cujas gravações levaram quase um mês. Gravações que se resumiam mais em ouvir as fantásticas histórias maurianas do que propriamente na formulação de perguntas. Aquelas saborosas histórias que muitas vezes giravam em torno de seus tempos de Cataguases, os tipos folclóricos da cidade, histórias dos estúdios da Phebo Brasil Film e de cinema, tema recorrente que pairava sobre tudo que ele falava. E Mauro falava/descrevia por imagens. Falava como se filmasse. O cinema era sua escritura.

E como você definiria a personalidade dele a partir desse contato pessoal?
Como todas as pessoas que primam pela inteligência, Mauro era por excelência um ser muitíssimo bem-humorado – e trazia dentro de si o espírito gozador de moleque mineiro. Antes de tudo, era um curioso. Um ser atento a tudo que se passava à sua volta, ou da qual ouvira falar. Autodidata, não se contentava em saber como o mundo se movia: queria mesmo era mover o mundo. Foi essa curiosidade que o levou a fazer cinema. Primeiro, atraído pela técnica; logo, senhor dela, criando com seu grande talento uma linguagem própria e sempre inovadora.

Foram amigos até a morte dele? Era um contato contínuo?
Não o vi em seus últimos tempos. Depois de seu aniversário de 80 anos, em 1977 (existe uma bela imagem nossa na ocasião, feita pelo saudoso fotógrafo Clóvis Scarpino, e que está no meu livro), fui poucas vezes a Volta Grande. Envolvido com o meu trabalho no Rio, ia cada vez menos e sempre muito rapidamente a Cataguases, e não tinha tempo para desviar viagem e visitar o meu amigo. No dia em que Mauro morreu (04.11.1983), eu estava meio adoentado, e de cama no Rio. Mandei emocionado telegrama pra Dona Bêbe, sua mulher e o grande e único amor de sua vida (eles foram casados por mais de 50 anos, e eram conhecidos como “Romeu e Julieta da Zona da Mata Mineira”). Nunca mais a vi: não tive coragem. Anos depois, chorei, novamente emocionado, ao ver as fotos do sepultamento do cineasta realizadas por meu amigo Walter Carvalho e exibidas em Cataguases, no Centro Cultural Humberto Mauro. Fecho o meu livro com essas fotos do Waltinho e o texto que escrevi para a exposição. Mas, isso é pouco. Na verdade, fiquei em débito com meu amigo. E para sempre. Meu livro é também um pouco-muito para quitar essa minha dívida de afeto com Humberto Mauro.

Humberto Mauro foi um pioneiro não apenas por ter começado no cinema nos anos 20, mas por ter partido do zero, numa cidade do interior mineiro, sem nenhum conhecimento prévio do que ia arriscar fazer. Glauber o chama de "puro", e não de "primitivo". Gostaria que comentasse essa "pureza" do cinema do Humberto Mauro.
Glauber acerta em cheio quando descarta o que possa haver de primitivo em Mauro. Isso porque ele não tinha, nem nunca teve, nada de naïf, de ingênuo. Puro, sim, porque o cinema de Mauro surge dele mesmo, de sua vivência, de suas descobertas – e traz sempre como assinatura a força atávica,a pureza de sua poética rural. Ao voltar sua câmera em panorâmica sobre o mundo da paisagem mineira, ele documenta como ninguém aquele “grande microcosmo” de um Brasil profundo e desconhecido. É como diz o próprio Glauber sobre o cinema de Mauro: “Puro como John Ford, puro como Griffith ou como o cinema intelectual de Eisenstein”.

Mauro foi propulsor das reflexões levantadas pelo Cinema Novo, nos anos 60. Você acredita que os filmes do Mauro ainda podem nos dizer alguma coisa no (e do) Brasil de hoje?
Num trecho de uma de suas palestras radiofônicas, transcrito em meu livro, Mauro fala sobre duas escolas de cinema: a dos diretores americanos, que conserva o compasso de um filme de acordo com o bater normal do coração, que cresce sob emoções mais fortes; e a outra, dos diretores europeus, que atrasa a cadência do filme até o compasso do pulso estar mais adiantado. Uma faz sentir o filme. Outra faz a pessoa ver o filme. Mauro privilegia a primeira: “Sentir é melhor. É muito melhor estar dentro da festa que do lado de fora, apenas observando”. Em lugar de uma posição meramente contemplativa, de uma crítica distanciada, a opção por tomar partido, por mergulhar “dentro da festa”. Por transformar. É o que nos diz ainda hoje o cinema permanentemente novo de Humberto Mauro.

Diante de um cinema brasileiro em busca de ocupação de mercado e cada vez mais tentando se render à indústria para atrair espectadores, como Mauro reagiria à nossa atual realidade de produção?
“O público é o diabo”, me disse Mauro em uma de nossas entrevistas. “Ou você faz cinema, ou faz indústria. Não entendo como se gasta tantos mil contos em uma fita e ninguém vê. O Limite do Mário Peixoto, por exemplo: se passasse, não ficava um espectador até o final. Gostava muito do Mário, era um rapaz muito culto: eu mesmo, pessoalmente, estava recuperando a cópia do filme no Ince (o Instituto Nacional de Cinema Educativo, onde Mauro trabalhou mais de 30 anos e para o qual realizou cerca de 300 documentários). Esse negócio de indústria e cinema é um troço dos diabos: para você fazer indústria tem que fazer o filme, que deve ser exibido, que deve render dinheiro, e este deve voltar para você fazer um novo, senão não vai. O Canto da Saudade (seu último longa-metragem) eu fiz assim, imaginando fazer outro. Mas não deu dinheiro algum”. Acredito que essa sua fala seja válida até hoje – e seria exatamente essa a reação de Mauro à pergunta formulada.

Ironicamente, o maior entrave dos filmes do Mauro foi a distribuição, como ele mesmo dizia. Hoje, os filmes dele ainda são raridade e pouca gente das últimas gerações os assiste (todo mundo ouviu falar de Humberto Mauro, poucos o assistiram de fato). Poderíamos dizer que Mauro continua sofrendo da mesma sina da pouca visibilidade?
Sem dúvida. Embora tenha tido mais público que o já citado Limite (todo mundo fala e elogia, mas pouca gente realmente viu o filme de Mário Peixoto), as fitas de Mauro são hoje, infelizmente, “peças de museu” – e só se encontram preservados graças a técnicos especializados da Cinemateca Brasileira, em São Paulo, ou principalmente do CTAv, o Centro Técnico do Audiovisual, no Rio. Ali e aqui se encontra – cuidadosamente restaurado – o muito, ainda bem, do que restou da extensa filmografia mauriana. Grande parte, já em DVD, numa coleção de vários longas e curtas organizada pelo CTAv há alguns anos, mas infelizmente não lançada em termos comerciais. Sobre essa “sina de pouca visibilidade”, volto a citar Mauro, o que ele ainda me disse quanto à dicotomia cinema/indústria, lançando (a sério?) uma daquelas suas tiradas brincalhonas: “Não sou contra a indústria, mas a verdade é que o pintor pinta sozinho o que quer, o escultor esculpe o que bem entender, põe na galeria em exposição. Vende seu trabalho. Note bem: o seu trabalho. Agora, em cinema, seria ideal se o sujeito pudesse fazer pequenos documentários e exibi-los em exposição, em vernissages, vendendo o seu filme como o pintor ou o escultor. Até que seria bom: ‘Exposição de filmes em 16mm´. O sujeito ia lá, comprava o que queria, e depois passava para a família...”. Nada mais Mauro: cineastas vendendo seus filmes em permanente exposição... quem sabe?

Por fim, para mesclar a sua formação poética, queria que me respondesse o que há de mais poético na obra cinematográfica de Mauro.
Para mim, o “grande Mauro”, onde ele extravasa toda a sua sensibilidade, está nos documentários – naquele incessante voltar de câmera para a paisagem mineira, a retomada do mundo tão familiar de sua infância e juventude. O mundo-Mauro em permanente movimento, instauração de uma écloga de imagens extremamente autorais, de força e beleza tamanhas. Uma poética singlular, passada por aquelas imagens em semi-sépia, como eu digo num dos fragmentos de um dos poemas que inseri no livro: “o sol nos olhos/ carro de bois/ sons da mata/ gerais/ girando/ girando/ gerando o pedal da velha/ o fogo-a água-a roca-a roça-o olho/ mãos que movem a roda/ o engenho/ o girar do mundo/ o sol e seu desenho/ no princípio/ o fim de tudo/ fita que se move/ e fica na retina/ pra sempre presa/ à menina-dos-olhos que nos comove”.

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