sábado, 22 de maio de 2010

Apichatpong, o Joe



por Marcelo Miranda

Por pouco, o diretor tailandês Apichatpong Weerasethakul não consegue vir à Riviera Francesa apresentar seu novo filme na competição do 63º Festival de Cannes. Ele teve dificuldades de sair de seu país, por conta da guerra civil que tomou conta do lugar na última semana. "Tive problemas com o passaporte e fui a três embaixadas até conseguir embarcar. Estou com medo da volta", disse ele ontem aos jornalistas.

Weerasethakul (ou Joe, como é mais conhecido) está na Croisette exibindo "Uncle Bonmee Who Can Recall His Past Lives" (ou "Tio Bonmee que pode recordar suas vidas passadas", em tradução livre). O filme marcou outro momento memorável desta edição do evento. Uma Palma de Ouro a Joe não seria de todo imprevisível e ainda iria coroar uma decisão corajosa do júri presidido por Tim Burton. A premiação acontece domingo.

O cinema desse tailandês de 39 anos não se parece com absolutamente nada do que você já viu ou verá, sob todo e qualquer aspecto. Há vários cineastas ímpares assim, mas o caso de Joe é ainda mais forte por vir de uma periferia do mundo como é a Tailândia, sempre sofrendo com toda dificuldade possível a uma nação do terceiro mundo. Imaginação como a de Weerasethakul só poderia brotar num ambiente desses, e o tipo de trabalho que ele faz só tem sentido quando o espectador limpa olhos e mentes de quaisquer noções prévias do que acredita que um filme deva ser, e embarca virgem para a experiência sensorial e estética proposta por Joe.

"O cinema é basicamente ilusão. Eu queria usar elementos para criar verdadeiras ilusões porque o cinema também pode preservar o espírito das pessoas", disse o cineasta em Cannes. O teor metafísico de Joe tem relação direta com suas crenças e seu projeto artístico. "Uncle Bonmee" parte da noção oriental de reencarnação, muito mais ampla que a ocidental. "Acredito na transmigração de almas entre humanos, plantas, animais e fantasmas. O filme mostra a relação entre homens e bichos ao mesmo tempo em que destrói a linha divisória entre eles", explicou.

Seria injusto e pouco produtivo tentar descrever ou definir do que trata o filme. Existem personagens, a ficção é embebida da realidade, há um roteiro como ponto de partida. Mas só isso é pouco. O mesmo pode ser dito de qualquer longa anterior de Weerasethakul, diretor injustamente quase nunca exibido no Brasil (apenas em mostras) e que acumula até o momento seis longas-metragens. Dois deles foram premiados em Cannes: "Eternamente Sua" (2002) ganhou troféu de melhor filme da mostra Um Certo Olhar (paralela à competição) e "Mal dos Trópicos" (2004) ficou com o Grande Prêmio do Júri. "Síndromes e um Século" (2006) teve passagem de respeito pelo Festival de Veneza, na Itália.

Algumas palavras-chave dão vaga noção do que se vê e sente nos filmes do diretor: floresta, grilo, caverna, calmaria, espíritos, sombras, ironia, água, música. "Quando alguma coisa é representada através do cinema, ela se torna memória coletiva de quem a assiste", comenta Joe. "Eu estou interessado em explorar as entranhas desse processo".

"Uncle Bonmee" é o mergulho mais radical de Weerasethakul nesse compartilhamento de sentimentos com o público. A naturalidade ao lidar com questões como reencarnação, espiritismo e choque cultural provoca imediato estranhamento, para logo depois transformar qualquer interrogação em puro fascínio. Só filmada por alguém com olhar depurado e sem vícios, uma cena de sexo entre um bagre e uma garota numa cachoeira soa como a coisa mais bonita e comum do mundo.

*Originalmente publicado em O TEMPO no dia 22.5.2010

2 comentários:

Wellington Machado de Carvalho disse...

Belíssima cobertura do festival de Cannes!!

pseudo-autor disse...

Estou ficando cada dia mais curioso para conhecer a filmografia desse cineasta. É tanta gente falando bem de seus filmes! Só fiquei triste pelo Mike Leigh, pois parece que seu "Another Day" era ótimo.

Cultura? O lugar é aqui:
http://culturaexmachina.blogspot.com