O filme passou na quinta-feira da semana passada, mas ainda vale falar dele. Este texto foi escrito no dia seguinte à exibição, mas por motivos diversos entra apenas agora. Segue:
Verdade mentirosa
Num primeiro momento, surge o estranhamento do universo apresentado em À Deriva, se pensado em relação aos filmes anteriores de seu diretor, o pernambucano Heitor Dhalia. Saem os personagens esquisitos e/ou atormentados de Nina e O Cheiro do Ralo, entram seres supostamente “reais”, com problemas típicos do cotidiano de uma família; saem as ambientações expressionistas ou a sujeira do ambiente para aparecer na tela uma geografia formada basicamente por penhascos, casas de veraneio e água – muita água. É como se o filme não fosse do mesmo Dhalia de antes, o que, para quem não tinha simpatia com os outros dois trabalhos, talvez possa soar promissor.
Porém, na medida em que se desenvolve, À Deriva revela o que realmente o torna um filme já identificado a Heitor Dhalia: a visão de mundo fetichista e pouco humanizada e a forma como os personagens são inseridos no espaço e na interação entre uns e outros. A impressão que se vai tendo a cada nova cena é de que estamos testemunhando os experimentos de ratinhos de laboratório que obedecem a estímulos enviados pelo cientista dominador de tudo. Se usarmos a metáfora da água, tão cara ao filme, podemos transferir a analogia para peixinhos num grande aquário controlado, nadando de acordo com o movimento da água estimulado por alguma força exterior.

Filme de tese dos menos discretos, À Deriva procura obsessivamente uma “beleza de imagem” em que importa pouco a humanidade do que se mostra e muito mais a construção do quadro como algo perceptível de ser milimetricamente moldado no intuito de parecer bonito – e, preferencialmente, desvinculado de qualquer ranço geográfico que possa “entregar” alguma verdade espacial sobre a qual o filme prefere se omitir (apesar de filmado nas praias de Búzios, no Rio de Janeiro, nada nos indica sequer que a ambientação seja no Brasil – incluindo os rostos “europeizados” de todo o elenco, em que o irônico paroxismo se dá na escolha do francês Vincent Cassel como figura central da narrativa).
O resultado é o esvaziamento daquelas imagens, tornando-as anódinas, insípidas, inodoras, quiçá incolores – o filme tem cores, mas elas são tão falsamente trabalhadas que fica difícil relacioná-las ao drama para além da superfície do plano. Vide a cena-chave em que a protagonista (a garota Laura Neiva) se entrega a um homem pela primeira vez: num barco à deriva (a relação com o título, aqui, é a mais óbvia possível), o casal transa sob uma luz amarela que ilumina parte de seus corpos. Num corte, vê-se o sol crescente (e muito amarelo) diante do mar infinito. Se isso já é retrógrado numa novela das oito, imagine num filme de caráter pretensamente artístico.
Na noção de peixinho de aquário que o filme cria entre espectador e realidade fílmica, À Deriva utiliza elementos de linguagem que, na melhor das definições, está próximo do artificial. Da utilização em excesso da música como propulsor do drama, retira-se a possibilidade daqueles personagens respirarem (algo explicitado ao extremo no momento em que a mãe, vivida por Débora Bloch, é encontrada caída dentro de casa); das pistas falsas que vão brotando rumo à reviravolta do enredo, pouco sobra de coerência e coesão relativas às próprias imagens (o que era para ser o ápice do filme – o diálogo entre mãe e filha, em que esta descobre a verdade sobre a crise de seus pais – soa como um monólogo explicativo em que quase é possível ler na tela as palavras do roteiro); da obviedade dos simbolismos plantados nas atitudes dos protagonistas, ascende o olhar pré-definido e determinista do realizador para com suas criações (o homem se torna pai de família responsável e redimido quando resolve lavar a louça); e a visão do sexo como “resolvedor de conflitos” (a garota que se solidariza com o pai depois de transar), antes de qualquer ponto de vista moral, é próxima da infantilidade.
Aí está outra analogia possível de ser feita: À Deriva lembra uma brincadeira de criança, com um bando de bonequinhos modelados de acordo com as vontades de seu dono.
PS: uma observação pessoal. Enquanto assistia a À Deriva, aquelas imagens e enredo me remetiam a um filme da Nova Zelândia pouquíssimo visto. Chama-se Chuva de Verão, tem direção de Christine Jeffs e foi lançado em 2001 (nem sei se passou pelos cinemas brasileiros, mas tem cópia em DVD disponível). Eu recordava de haver semelhanças entre um e outro, mas, pesquisando aqui e agora, percebi (e me lembrei com mais propriedade) de que é quase o mesmíssimo filme – não apenas no enredo, praticamente o mesmo (no sentido estrito do termo), mas também nas escolhas estéticas algo atabalhoadas de cada cineasta para com o mundo que explora.
Só por curiosidade, veja os cartazes de cada filme, para sentir o "universo": um está aqui, o outro está aqui.
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