quarta-feira, 15 de julho de 2009

Paulínia: "À Deriva", de Heitor Dhalia

por Marcelo Miranda

O filme passou na quinta-feira da semana passada, mas ainda vale falar dele. Este texto foi escrito no dia seguinte à exibição, mas por motivos diversos entra apenas agora. Segue:

Verdade mentirosa
Num primeiro momento, surge o estranhamento do universo apresentado em À Deriva, se pensado em relação aos filmes anteriores de seu diretor, o pernambucano Heitor Dhalia. Saem os personagens esquisitos e/ou atormentados de Nina e O Cheiro do Ralo, entram seres supostamente “reais”, com problemas típicos do cotidiano de uma família; saem as ambientações expressionistas ou a sujeira do ambiente para aparecer na tela uma geografia formada basicamente por penhascos, casas de veraneio e água – muita água. É como se o filme não fosse do mesmo Dhalia de antes, o que, para quem não tinha simpatia com os outros dois trabalhos, talvez possa soar promissor.

Porém, na medida em que se desenvolve, À Deriva revela o que realmente o torna um filme já identificado a Heitor Dhalia: a visão de mundo fetichista e pouco humanizada e a forma como os personagens são inseridos no espaço e na interação entre uns e outros. A impressão que se vai tendo a cada nova cena é de que estamos testemunhando os experimentos de ratinhos de laboratório que obedecem a estímulos enviados pelo cientista dominador de tudo. Se usarmos a metáfora da água, tão cara ao filme, podemos transferir a analogia para peixinhos num grande aquário controlado, nadando de acordo com o movimento da água estimulado por alguma força exterior.

Porque, apesar de lidar com seres humanos em contato com natureza, pouca verdade nasce das imagens de À Deriva. É perceptível a intenção de captar os mecanismos que provocam a desagregação familiar cuja trama é central no filme. O problema maior surge quando se percebe que o longa é desenvolvido sob a perspectiva de um criador que demonstra já ter entendido (ou achado ter entendido) do que ele está falando: em vez de testemunhar uma espécie de “tempo real” da desagregação, com o filme seguindo o ritmo do que os personagens sentem, temos conceitos previamente mapeados e agora, finalmente, impressos na película, cabendo ao diretor provar, diante de uma plateia, os seus pontos de vista sobre aquelas situações. Não me surpreenderia se um debate sobre este filme for daqueles em que importa menos apontar escolhas estéticas/expressivas sobre a realização do que explicar, didaticamente, o que se quer dizer com aquelas imagens.

Filme de tese dos menos discretos, À Deriva procura obsessivamente uma “beleza de imagem” em que importa pouco a humanidade do que se mostra e muito mais a construção do quadro como algo perceptível de ser milimetricamente moldado no intuito de parecer bonito – e, preferencialmente, desvinculado de qualquer ranço geográfico que possa “entregar” alguma verdade espacial sobre a qual o filme prefere se omitir (apesar de filmado nas praias de Búzios, no Rio de Janeiro, nada nos indica sequer que a ambientação seja no Brasil – incluindo os rostos “europeizados” de todo o elenco, em que o irônico paroxismo se dá na escolha do francês Vincent Cassel como figura central da narrativa).

O resultado é o esvaziamento daquelas imagens, tornando-as anódinas, insípidas, inodoras, quiçá incolores – o filme tem cores, mas elas são tão falsamente trabalhadas que fica difícil relacioná-las ao drama para além da superfície do plano. Vide a cena-chave em que a protagonista (a garota Laura Neiva) se entrega a um homem pela primeira vez: num barco à deriva (a relação com o título, aqui, é a mais óbvia possível), o casal transa sob uma luz amarela que ilumina parte de seus corpos. Num corte, vê-se o sol crescente (e muito amarelo) diante do mar infinito. Se isso já é retrógrado numa novela das oito, imagine num filme de caráter pretensamente artístico.

Na noção de peixinho de aquário que o filme cria entre espectador e realidade fílmica, À Deriva utiliza elementos de linguagem que, na melhor das definições, está próximo do artificial. Da utilização em excesso da música como propulsor do drama, retira-se a possibilidade daqueles personagens respirarem (algo explicitado ao extremo no momento em que a mãe, vivida por Débora Bloch, é encontrada caída dentro de casa); das pistas falsas que vão brotando rumo à reviravolta do enredo, pouco sobra de coerência e coesão relativas às próprias imagens (o que era para ser o ápice do filme – o diálogo entre mãe e filha, em que esta descobre a verdade sobre a crise de seus pais – soa como um monólogo explicativo em que quase é possível ler na tela as palavras do roteiro); da obviedade dos simbolismos plantados nas atitudes dos protagonistas, ascende o olhar pré-definido e determinista do realizador para com suas criações (o homem se torna pai de família responsável e redimido quando resolve lavar a louça); e a visão do sexo como “resolvedor de conflitos” (a garota que se solidariza com o pai depois de transar), antes de qualquer ponto de vista moral, é próxima da infantilidade.

Aí está outra analogia possível de ser feita: À Deriva lembra uma brincadeira de criança, com um bando de bonequinhos modelados de acordo com as vontades de seu dono.

PS: uma observação pessoal. Enquanto assistia a À Deriva, aquelas imagens e enredo me remetiam a um filme da Nova Zelândia pouquíssimo visto. Chama-se Chuva de Verão, tem direção de Christine Jeffs e foi lançado em 2001 (nem sei se passou pelos cinemas brasileiros, mas tem cópia em DVD disponível). Eu recordava de haver semelhanças entre um e outro, mas, pesquisando aqui e agora, percebi (e me lembrei com mais propriedade) de que é quase o mesmíssimo filme – não apenas no enredo, praticamente o mesmo (no sentido estrito do termo), mas também nas escolhas estéticas algo atabalhoadas de cada cineasta para com o mundo que explora.


Só por curiosidade, veja os cartazes de cada filme, para sentir o "universo": um está aqui, o outro está aqui.

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