quarta-feira, 15 de julho de 2009

Paulínia IV - Gradações de sutileza

por Marcelo Miranda, de Paulínia (SP)

Foi só elogiar para a mostra competitiva do Festival de Paulínia voltar a apresentar trabalhos pouco expressivos. Depois de uma segunda-feira mais estimulante, com osd longas Moscou, de Eduardo Coutinho, e No Meu Lugar, de Eduardo Valente (leia minha crítica aqui), e os curtas Spetaculum, de Juliano Lucas, e Milímetros, de Erico Rassi, a terça-feira trouxe quatro produções difíceis de comentar sob viés menos rabugento ou irrascível.

O curta A Máquina do Tempo, de Carlos Craveiro, mais parece um manual técnico sobre trens. Consiste numa série de entrevistas com maquinistas que, entre o profundo conhecimento do ofício e a lamentação por uma época que já passou e não volta, torna-se uma enfadonha exposição de nomes, mecanismos, engrenagens, explicações. Como está na tela, não serviria nem para um Telecurso 2000, devido à completa falta de discernimento ou ao menos a tentativa de não soar tão anti-cinema.

O outro curta, Nesta Data Querida, de Julia Rezende, registra, sob viés da ficção, a frustração de uma mãe diante da ausência dos amiguinhos da filha na festa de aniversário desta. E é apenas isso: sem maiores preocupações em construir uma verdade através da imagem, a direção se resume a mostrar o rosto da mãe, as brincadeiras da menina e a condescendência da empregada. A fartura de comilanças na mesa de um típico apartamento de classe média e o tom algo constrangedor com a situação alheia que o filme tenta construir atestam ser este um olhar de expiação para algum ranço do passado, que ganha forma de filme menos para existir como tal do que para carregar essa má consciência para com terceiros.

A não-sutileza da raiva
Curiosamente, a ideia da expiação transpassa todo o longa de ficção da noite, Olhos Azuis, de José Joffily. Inicialmente, há um clima que instiga o espectador a se atentar à trama e acompanhar seus desdobramentos: um americano surge perdido no Brasil, enquanto, em flashback, assistimos a este mesmo personagem trabalhando num setor de fiscalização de passageiros estrangeiros em alguma sala de aeroporto dos EUA. A primeira meia hora se constroi num suspense crescente, deixando que o ator David Rasche imprima no rosto a ambiguidade do protagonista, não permitindo a percepção de sua natureza verdadeira.



Só que Joffily não parece satisfeito em se ater à construção de um thriller de suspense - mesmo utilizando a mais básica estrutura de narração de filme B americano, desde a mudança de tempos da ação até música, enquadramentos e atuações. A partir de um determinado momento, Olhos Azuis mergulha numa série de acontecimentos em que sutileza e multiplicidade de olhar se tornam peças raras, sobrando o rasgo de estereótipos e lugares-comuns sobre a relação estrangeiro-expatriado, sendo a América do Norte o grande vilão loiro, branquelo e de olhos azuis (como o título do filme frisa de antemão), enquanto os latinos (cubanos, argentinos, brasileiros, hondurenhos) são pobres coitados que querem ganhar a vida, legal ou ilegalmente, na prosperidade americana.

Enquanto isso, nos flashbacks, o mesmo personagem percorre o "Brasil profundo" em busca de algo cuja motivação já é possível ser percebida com menos de uma hora de projeção. Ele ganha a companhia de uma lindíssima prostituta pernambucana (cabelos, olhos e pele amorenados, seios e barriga à mostra, exímia dançarina de forró e craque no inglês), que tem um passado traumático com o avô e - claro - vai aproveitar a viagem para buscar redenção. E para reforçar a pouca discrição de Joffily com suas intenções, o americano bebe indiscriminadamente e está morrendo de câncer.

É tudo tão explicitamente aborrecido na relação entre os personagens ou a construção de suas motivações, a estética é tão próxima ao que se critica, o inglês (falado em 90% dos diálogos do filme) é tão carregado e acentuado, a quantidade de elementos "polêmicos" é tamanha, o desfecho é tão milimetricamente arquitetado para transmitir toda e qualquer "mensagem" até então buscada, que tem-se a impressão de Joffily estar, na verdade, fazendo troça com tudo isso. O paroxismo, quando atinge o máximo possível dos limites, pode inverter a imagem ambicionada.

Mas Joffily entrega o ideal de uma "verdade absoluta" quando o filme se preocupa em mostrar o entorno onde o americano transita em Pernambuco. A cada passo da caminhada, há um diálogo-discurso ("será que o século XXI chegou mesmo?", questiona ele, olhando para um caminhão de boias-frias; "podem ficar, se não se importarem com a pobreza", fala o avô aos viajantes) ou rostos da população anônima nordestina; no aeroporto, a troca agressiva de impressões sobre a realidade alheia (num certo instante, as farpas parecem conferência de Direitos Humanos em alguma bancada das Nações Unidas) aproxima tudo de uma grande caricatura - mesmo tendo a fortíssima presença de Irandhir Santos, ator a ser urgentemente mais requisitado no nosso cinema.

Olhos Azuis quer debater o abuso na fiscalização dos imigrantes, o que é bastante pertinente. Mas, em vez de fazer desta questão um filme, Joffily faz do filme essa questão. O resultado se assemelha muito mais a Crash, de Paul Haggis - em que todo e qualquer instante é tomado pelo desespero do cineasta em provar a própria visão de mundo - do que, por exemplo, Um Plano Perfeito, em que Spike Lee, na ânsia de questionar a efervescência de raças (e o preconceito advindo disso em pleno coração da América), faz um filme de assalto em que o menos importante - se olhado para além da superfície - é o resultado da ação dos criminosos.

A sutileza do carinho
Em chave oposta, o documentário Só Dez por Cento é Mentira, de Pedro Cézar, faz retrato muito carinhoso de sua figura central, o poeta Manoel de Barros. Cézar consegue o impossível: entrevistar o espirituoso Barros, um recluso assumido e notório.

Essa presença física e cênica do poeta (ele é figura rara) é paradoxalmente a camisa-de-força do filme. Se, por um lado, cada entrada das palavras faladas e escritas de Barros é uma preciosidade total, por outro o filme carece de mais do que isso enquanto articulador de imagens, sons e letras. É como se Pedro Cézar, seja satisfeito em ter o poeta no filme, seja inibido exatamente pelo mesmo motivo, não tivesse coragem de aprofundar um pouco mais as questões levantadas.



Nisso, o documentário se torna pouco expressivo, porque se sustenta apenas por uma presença. É um mecanismo passível de "salvar" uma série de filmes recentes - Um Homem de Moral, sobre Paulo Vanzolini, Mamonas, o Doc, de Cláudio Khans, exibido em Paulínia; ou mesmo o besta Caro Francis, também apresentado aqui, em que Nelson Hoineff é generoso ao mostrar vários momentos de antologia com o jornalista Paulo Francis.

Talvez "salvar" não seja o melhor termo. "Legitimar" está mais próximo do que acaba acontecendo com estes filmes. Criados para prestar tributo a figuras da cultura brasileira, tornam-se peças irrelevantes (num sentido mais expressivo) por terem carinho demais e atenções estéticas de menos. É o tipo de trabalho que, ao final, o pensamento corrente se resume a um "Ok, é um filme válido". Mas, de filmes válidos, bem... Estamos cheios.

3 comentários:

Unknown disse...

Assessoria de Imprensa Cel.U.Cine | Oi Telecom

Olá Equipe do Blog do Polvo, boa tarde !


O Festival Cel.U.Cine de micrometragem em parceria com a Oi Telecom já está na 3° etapa e é um sucesso. O Tema da nova etapa é “De arrepiar” e as inscrições vão até 27 de Julho.

Gostaríamos de enviar à voces o novo release desta 3° etapa do festival, sob o tema “De Arrepiar”.


Ficamos agradecidos retornando este email para nós.

Desde já, nosso muito obrigado!


Assessoria Festival Cel.U.Cine de Micrometragem | Oi Telecom | http://www.celucine.com.br/index.php

Marcelo V. disse...

Mas o Barros já tinha dado entrevistas extensas para aquela série biográfica (hagiográfica até dizer chega) dele que passou no Futura. Nunca o vi como um recluso (como o Trevisan ou o Fonseca há mais anos), ele simplesmente mora "longe" e ficou muito tempo sem se dedicar à literatura, cuidando da fazenda...

Marcelo Miranda disse...

Não sabia dessa, xará. Boa informação. Abraço!