por Marcelo Miranda, de Paulínia (SP)
Um festival de cinema tem responsabilidades. Ele é, ao mesmo tempo, o retrato da produção de um determinado período e a visão sobre o tipo de arte que o evento busca para si e também na relação com quem se submete a ele. No post abaixo, comentei meio apressadamente uma certa falta de olhar de festivais brasileiros, em suas respectivas últimas edições, para com algum cinema que não seja meramente ilustrativo ou "bonito".
Pois na noite de sábado, dia 11, o II Festival de Paulínia deixou explícito o que já estava sendo configurado desde o dia da abertura: a disposição em dar espaço a filmes "de projeto", em vez de filmes "de cinema". A exibição do catastrófico Destino, de Moacyr Góes, levou às raias do inacreditável a capacidade de um evento cinematográfico não se levar a sério. Gastar linhas aqui simplesmente falando mal do filme seria perda absoluta de tempo e espaço: se um projeto como esse não tem qualquer tipo de cuidado minimamente artesanal, incluindo aí o descaso com narrativa, estética, ambientação, elenco, montagem, roteiro e qualquer outro elemento formador de um filme - um bom ou um mau filme, mas um filme -, então destroçá-lo numa crítica se torna irrelevante diante da mendicância primal daquilo que nos é mostrado na tela.
Porém, a omissão não deve acontecer quando se tem um festival como Paulínia, que se quer relevante, mas permite, num limitado universo de apenas seis longas de ficção em competição, um trabalho como Destino estar entre os selecionados. A relação com o filme é algo que ultrapassa o gosto, os parâmetros ou a formação do crítico ou do espectador: sob todo e qualquer aspecto, Destino é indefensável.
Para não se achar que baixou o fascistoide neste que aqui escreve, é necessário registrar que Lucélia Santos, produtora e protagonista do filme, disse no palco, antes da exibição: "este é o nosso bebê. Não é um bebê perfeito, mas é o único que temos". No dia seguinte, durante debate, ela voltou a reconhecer o quanto o projeto é falho: "claro que a minha vontade era termos um filme perfeito, mas isso não aconteceu. O roteiro tem problemas graves e faltou à direção tentar salvar as nossas vulnerabilidades. Mas, agora que o bebê existe, não vou abandoná-lo". O debate, aliás, transformou-se em uma missa de corpo presente, onde os pais (o outro produtor, Diler Trindade, estava na mesa) reconheciam e pediam desculpa por terem gerado uma deformidade.
Só que não falamos, aqui, de um ser humano. Falamos de um filme, de um suposto objeto artístico que, se não tem obrigação de ser o melhor do mundo, tem, sim, compromisso em responder às suas próprias limitações. O que se viu, tanto na tela quanto no debate, foi uma completa condescendência à propalada necessidade do projeto existir, seja a que custo for. Se é preciso um abominável entrecho do filme em que a ação pára enquanto se faz propaganda de uma enorme gama de produtos (há marcas de roupas, joias, sandálias, bombons, sucos, cachaças e até água de coco), que seja, pois, sem isso, "o filme não existiria", nas palavras de Lucélia Santos. Se houve divergências no desenvolvimento do roteiro ou mudanças completas no andamento de tudo, ou mesmo a necessidade de sete montadores, que fique o que restou do conceito original. Se foram feitas várias versões do filme (Diler falou: temos o filme 1, o filme 2 e o filme 3. O que vocês viram é o 3"), pouco importa se isso expõe as fragilidades da proposta. O negócio é fazer o filme de qualquer jeito, mesmo que destrambelhadamente, e depois "não abandoná-lo".
O questionamento, aqui, está longe de "proibir" um filme como Destino de existir ou ser exibido. Se há alguma instância passível de ser mais cobrada, nem é a dos realizadores, mas a da curadoria que escolhe exibir algo assim: se o filme é um despautério, se os produtores reconhecem a ineficácia do projeto tão acalentado, se não existe ambição de lançá-lo nos cinemas posteriormente - enfim, se não existe nada -, então qual a justificativa para ele competir num festival, sob o jugo de um júri que pode inclusive se sentir no compromisso de lher conceder algum prêmio?
Destino não é caso isolado. É apenas o mais gritante. Suas deficiências são evidentes e não há quem não consiga vê-las. Ele é o paroxismo de uma seleção até aqui muito pouco preocupada com cinema propriamente dito. O que se viu até agora em Paulínia são filmes "bonitos e sensíveis" (À Deriva), outros fofinhos e inofensivos (O Contador de Histórias), projetos "relevantes" (Destino) e, no caso dos documentários, a visibilidade de figuras conhecidas do público (Caro Francis e Mamonas, o Doc).
Em diferentes proporções, são todos falhos na maneira como se articulam enquanto obras de cinema, tendo sempre como prioridade exaltar algum valor ou transmitir qualquer tipo de "mensagem" - ainda que de forma torpe (Caro Francis) ou transformando os personagens em ratos de laboratório (À Deriva) -, em vez de se portarem como exaladores de sons, imagens, rostos, vozes, que, juntos, formem uma outra coisa que normalmente se chama "cinema".
Os filmes exibidos em três dias de Paulínia existem para o cinema, e não pelo cinema.
domingo, 12 de julho de 2009
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4 comentários:
Que mico colossal esse Destino, hem?
Será que eles preferiram o vexame de exibir um filme horroroso do que não exibir nada e ficar devendo milhões ao governo, como ocorreu com o Chatô?
nossa! gente experiente envolvida... o que os levou a se perderem tanto assim?
...digo, sobre o filme. pq sobre paulínia me parece claro os motivos: incompetência e falta de discernimento na escolha de um caminho. uma pena. um festival não pode ser feito apenas com nomes.
Mico é ser educado com Góes e quadrilha. Quando começou a aparecer merchandising de polpa congelada, quase em plano-detalhe, deu pra perceber que o poço não tinha fundo mesmo.
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