sábado, 9 de janeiro de 2010

A Falecida, de Leon Hirszman



por Marcelo Miranda

Nada podia parecer tão distante, na efervescência político-cultural dos anos 60 no Brasil, do que a aproximação entre o escritor Nelson Rodrigues e a geração de diretores do Cinema Novo, capitaneada por Glauber Rocha. De um lado, o "reacionário" direitista, cuja obra se detinha nas agruras existenciais da classe média; de outro, realizadores de esquerda, com o propósito de lançar nas telas, através de imagens contundentes, as dores sofridas pelo povo mais economicamente frágil do país.

Desse embate, surgiu "A Falecida". Adaptado de uma peça de Nelson encenada em 1953 e primeiro longa-metragem de Leon Hirszman, o filme estreou nos cinemas em 1965. Quarenta e cinco anos depois, o trabalho chega ao DVD, pela Videofilmes, em versão restaurada digitalmente, o que permite a um novo público conhecer o ponto de partida da breve obra de Hirszman - o cineasta morreu aos 49 anos, em 1987 - e testemunhar, através um filme de força grandiosa, os conflitos ideológicos que pautaram o pensamento cultural brasileiro naquele complexo período.

"Foi uma das mais ousadas adaptações de um texto de Nelson Rodrigues. O Leon tirou muito do que a história tinha de espetacular e a tornou intimista", afirma Eduardo Escorel, um dos curadores do projeto de restauração dos filmes de Hirszman. "O próprio Nelson, na época, queria se aproximar de alguns cineastas identificados com posições políticas diferentes das dele".

A ousadia de Hirszman no trato com "A Falecida" é destacada pelo ensaísta Ismail Xavier no livro "O Olhar e a Cena" (2003). Diz o autor: "Ele [Hirszman] navega a contrapelo dos ‘lances ousados’ e descarta a velocidade e o ‘cinematográfico’ de Nelson Rodrigues. Evita a modulação tragicômica e opta de forma radical pelo sério-dramático, enfrentando bem o risco aí envolvido de lidar com a questão do trágico".

O que se assiste em "A Falecida" é, de fato, a derrocada de uma personagem (Zulmira, interpretada por Fernanda Montenegro em seu primeiro papel no cinema) cercada pelas próprias obsessões. Em vez de fazê-la uma alucinada passional, algo mais próximo de Nelson, Leon Hirszman a fez uma mulher bastante comum, alienada, autoindulgente - e não apontou dedos para possíveis culpados dessas condições.

"Há (...) um interesse na discussão das questões sociais (divisão de classes, o mundo do trabalho, o desemprego), e ele [Hirszman] tem diante de si uma situação em que os problemas de consciência e de mobilização política pautam-se por uma notória ausência no mundo das personagens", escreve Ismail Xavier. Se Nelson Rodrigues queria "denunciar" a própria protagonista como representação de uma classe média mentalmente falida, Leon Hirszman buscou uma espécie de provocação ao meio onde Zulmira transita.

Eduardo Escorel ainda reforça o caráter pessoal de "A Falecida" em relação a Hirszman: "Era um universo conhecido dele e sobre o qual o Leon acreditava que poderia falar e que o interessava: a zona norte do Rio de Janeiro (onde ele foi criado), a pequena vida de subúrbio, da sinuca, do futebol, de pessoas simplesmente vivendo. Era um projeto muito próximo do neorrealismo, ou de um pós-neorrealismo", diz Escorel. "Essa proposta de visão causou estranhamento no Nelson e no Joffre [filho do escritor e produtor do filme], e também uma certa tristeza por parte do autor".

Mudanças
Inicialmente, a adaptação a ser produzida por Joffre Rodrigues seria da peça "Senhora dos Afogados" (1947). Retornando de um período na Itália e impregnado pelo vírus do cinema, Joffre foi atrás de Glauber Rocha para fazer o serviço. "Eu tinha o dinheiro e o texto. Só precisava de alguém muito bom para dirigir. E quem era o grande nome no Brasil naquele momento? Glauber!", exalta ele, em entrevista registrada no DVD de "A Falecida".

Por questões ideológicas (a tal polarização da época), Glauber recusou a proposta. Hirszman, até então realizador de dois curtas documentais, foi convocado e levou junto o amigo Eduardo Coutinho, que seria seu roteirista. Assustados com a densidade mística de "Senhora dos Afogados", a dupla fez uma contraproposta: topariam a empreitada se pudessem adaptar "A Falecida". Joffre aceitou sem dificuldades.

Memórias.
A jornalista Maria Hirszman não era nascida quando "A Falecida" foi exibido nos cinemas, em 1965. Isso nunca a impediu de ter eleito este, por muitos anos, como o filme favorito realizado por seu pai. "Sempre o considerei um trabalho muito delicado e adoro os closes no rosto da Fernanda Montenegro", exalta Maria. "Quando eu tinha 15 anos, já achava impressionante que o meu pai o tenha dirigido com menos de 30 anos [Leon completou 27 anos durante as filmagens de ‘A Falecida’]. Quanto mais velha eu fico, mais isso me surpreende".

Sobre a audácia de Hirszman e Eduardo Coutinho em, às suas maneiras, subverterem os preceitos do universo de Nelson Rodrigues, Maria crê na interpretação de determinado trabalho: "Não precisa adaptar idêntico ao original. Há questões muito próximas ao Leon e que ele vai retomar nos filmes seguintes, como a mulher subjugada, a militância social e a loucura".

Maria se refere especialmente a "São Bernardo" (1972) e "Eles não Usam Black-tie" (1981), diferentes nas temáticas, mas próximos de "A Falecida" na visão autoral de Hirszman - desde serem também adaptações literárias (Graciliano Ramos e Gianfrancesco Guarnieri, respectivamente) à retratação dos personagens como figuras em constante digladiação com os espaços onde transitam.

Ismail Xavier, em ensaio no livro "O Olhar e a Cena", aponta nesse sentido como outra diferenciação entre a adaptação e o texto original: "A opção do cineasta (...) não corresponderia à preferência do dramaturgo, mas resultou numa das obras mais sugestivas criadas a partir de seus textos, original em sua inserção do corpo na composição do drama, dado o belo dueto entre câmera e atriz ".

Mesmo com o reconhecimento adquirido por "A Falecida" ao longo das décadas, o filme foi um fracasso retumbante quando exibido nos cinemas. O próprio Leon Hirszman, em entrevista reproduzida num livreto que acompanha o DVD, reconhece a receptividade ruim ao longa e aponta como uma das causas o mau lançamento no circuito carioca, numa semana de eleições. "Foi uma loucura, porque em época de eleição todo mundo só pensa em política", disse. " [Era] um filme que pretendia a comunicação com o público". Cotado para competir no Festival de Veneza, na Itália, o filme, segundo Hirszman, foi vetado, entrando apenas numa mostra paralela do evento internacional: "A política oficial estava contra o Cinema Novo".

O tom melancólico de "A Falecida" certamente não ajudou. Como escreveu o crítico Jean-Claude Bernardet em ensaio no livro "Brasil em Tempo de Cinema" (1967/2007), o filme " [nada] tem de alegria, nada de força de vontade. O marasmo, a estagnação, a decomposição das coisas e das pessoas, a impotência".

*Matéria originalmente publicada em O TEMPO no dia 9.1.2010

Um comentário:

Adilson Marcelino disse...

Que matéria linda, Marcelo.
Parabéns!!!
Abs