segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

A Nova Hollywood em livro



por Marcelo Miranda

Em 1968, um filme que quase ninguém viu chamado "Na Mira da Morte" mostrava um velho ator de fitas de terror se recusando a continuar na profissão. A certa altura, ele pega um jornal e lê a manchete sobre um assassino sanguinário solto nas ruas. E diz: "O mundo de hoje teme esse tipo de monstro". O diretor era Peter Bogdanovich, em sua estreia nas telas. Neste filme, ele detectou de forma muito perspicaz a mudança que já se operava no cinema dos EUA e na qual ele mesmo, Bogdanovich, seria figura fundamental.

É dessa época - conhecida como Nova Hollywood - que trata o livro "Como a Geração Sexo-Drogas-e-Rock’n’Roll Salvou Hollywood", do jornalista Peter Biskind, lançado em 1998 e publicado agora pela primeira vez no Brasil. Tendo como marcos "Bonnie e Clyde" (1967), de Arthur Penn, e "Sem Destino" (1969), de Dennis Hopper, e como ocasos "Touro Indomável", de Martin Scorsese, e "O Portal do Paraíso", de Michael Cimino (ambos de 1980), Biskind traça um amplo perfil desses pouco mais de dez anos, permeado por centenas de entrevistas com praticamente todos os envolvidos num dos momentos mais criativamente efervescentes - e controversamente tumultuados - que a produção norte-americana teve.

Se no passado figuras austeras como John Ford, Howard Hawks e Fritz Lang faziam seus grandes filmes de estúdio de maneira razoavelmente ordenada, o desbunde dos anos 60 e 70 - alavancado pela campanha dos EUA no Vietnã, os escândalos envolvendo o então presidente Richard Nixon, a liberdade sexual e a ascensão de um novo tipo de violência urbana - teve ecos caóticos em Hollywood. A decadência das megacorporações (Universal, Columbia, Paramount) e a perda de poder dos produtores fez com que filmes de orçamento mais modesto e realizadores "encrenqueiros", inspirados pela Nouvelle Vague francesa, tomassem a frente.

No livro de Biskind, dois nomes ecoam de imediato: Dennis Hopper, o maloqueiro-mor ("era violento e perigoso", diz uma de suas ex-mulheres), e Jack Nicholson, espécie de "coringa" que transitou de um lado a outro e soube muito bem o que escolher fazer. Mas Bogdanovich, Francis Ford Coppola, William Friedkin, Martin Scorsese, Hal Ashby, George Lucas e Robert Altman também protagonizam a saga de desencontros e brigas homéricas - com colegas, com estúdios, com atores - regadas a muito ácido e cocaína.

Chega a ser incrível constatar como, dessa balbúrdia, brotaram obras-primas do naipe de "O Poderoso Chefão", "Taxi Driver", "Operação França", "O Exorcista", "Amargo Regresso", "A Última Sessão de Cinema" e "Nashville", entre alguns tantos mais. Talvez tais filmes surgiram justamente por causa dessa balbúrdia - que era, afinal, o espírito da Nova Hollywood.

Biskind não poupa ninguém. Pautando-se por conversas ao longo de sua carreira, o jornalista - ex-editor da revista "Premiere" - lança todo tipo de informação (algumas bem infames) e deixa ao leitor escolher se julga cada figura citada ou simplesmente absorve o que lhe chega aos olhos. É compreensível, portanto, que o livro tenha gerado tanta controvérsia - o que talvez explique a demora de seu lançamento por aqui.

O que o livro de Peter Biskind revela não é necessariamente uma novidade. Na França, o movimento da “nova onda” (a Nouvelle Vague) já tinha desenvolvido esquemas independentes e autorais de produção, aproveitando-se de equipamentos mais leves, filmagens em locações e descompromisso com estúdios. A diferença da Nova Hollywood foi mais o nível de pirações dos realizadores e mesmo os orçamentos mais inflados, ainda que de padrões independentes.

E também o olhar sobre a própria forma de contar as histórias. Se a Nouvelle Vague queria quebrar qualquer ranço de classicismo, preferindo fazer dos filmes peças mais verticais (em que uma cena não necessariamente se referia à anterior), a Nova Hollywood manteve a narrativa clássica, porém potencializando suas características e imprimindo doses até então inéditas de violência, niilismo e desilusão.

Nunca o cinema dos EUA havia trabalhado com tamanha ousadia na forma e na temática, abrindo espaço para personagens anárquicos – na maior parte das vezes, assaltantes, andarilhos, chefões mafiosos, assassinos, padres pecadores – e sem pudores de expor ao público nudez, sexo e sangue. Biskind narra tudo isso como uma grande aventura, cheia de lances ora surpreendentes, ora empolgantes, alguns mesmo chocantes. A quem quer saber sobre essa fase, é hipnótico.

*Matéria originalmente publicada em O TEMPO no dia 16.1.2010

3 comentários:

Murilo disse...

Coincidência: folheei esse livro antes de ir ver o novo do Herzog, num shopping - minha mão coçou pra comprar, mas acabei desistindo. O seu texto já me deu vontade enorme de voltar pra comprar. Deu pra ler o trecho em que alguém - não me lembro quem - diz que se Scorsese fosse gay, se casaria com o Robbie Robertson do "The Band", tamanha a afinidade entre os dois, hehe. A tradução é da Ana Maria Bahiana, não? Parece ser daqueles livros que se devora em poucas horas.

Marcelo Miranda disse...

Ei, Murilo. O livro é mesmo de devorar. Só não se lê em poucas horas porque ele é bem denso em tamanho. Tem muita especulação também, mas no geral é a grande biografia de uma década e das figuras mais importantes do período no cinema americano. Comecei a ler desconfiado, mas logo não larguei mais.

Thiago Macêdo disse...

Acabei de acabar o livro. Por um lado fica uma sensação de que alguns desses grandes filmes são obras do acaso, da sorte, que muitos pareciam nem saber o que estavam realmente fazendo. Ou, talvez, que ninguém nunca realmente saiba. A genialidade pode residir aí.

Agora, que povo imundo! Dennis Hopper, Friedkin, Altman, Coppola...só gente de quinta categoria.