por Marcelo Miranda
É difícil não se perturbar com a forma como se dá o acúmulo de imagens e sons de "Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo". O filme, fruto de uma parceria dos diretores Karim Aïnouz e Marcelo Gomes e exibido na noite de sexta-feira na abertura da 13ª Mostra de Cinema de Tiradentes, abre mão de um corpo para se ater a registros de paisagens, pessoas anônimas e massas populares. Se em "Madame Satã", "O Céu de Suely" (Aïnouz) e "Cinema Aspirinas e Urubus" (Gomes) a presença de uma ou mais figuras físicas bastante evidentes servia de mote a caminhos e embates de poder entre elas e o entorno no qual estavam expostas, neste novo trabalho a dupla faz do protagonista José Renato apenas uma voz que permeia as imagens.
A voz do ator Irandhir Santos, antes de ser uma narração, reflete a alma de uma trajetória errática, que começa muito firme em suas convicções (algo que o título do filme atesta) para ir se tornando, na medida em que a viagem se aprofunda num interior nordestino de forte tactibilidade, menos concreta e muito mais angustiante nas dúvidas e dores desse personagem de corpo ausente.
Karim Aïnouz confirma que "Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo" guarda essa característica de questionar a fisicalidade no cinema. "Tínhamos o desejo de, mais que mostrar um corpo, mostrar uma presença. Isso é fundamental de ser discutido no cinema contemporâneo", disse o diretor, na manhã de ontem, em debate na mostra. "Saímos do campo da moral para entrarmos no campo da ética".
Ele e Marcelo Gomes saíram em 2000 para "uma viagem emocional" pelo sertão, nas palavras de Gomes. "Era a redescoberta e a desconstrução do sertão, numa tentativa de ir contra os clichês desse universo", reforçou. Munida de uma câmera, a dupla percorreu vários quilômetros estrada adentro captando o "isolamento e abandono" (segundo Gomes). Decidiram, recentemente, inserir nesses registros documentais um personagem de ficção - um geólogo imbuído de elementos próximos aos romances de Graciliano Ramos e Euclides da Cunha. Essa figura inventada reflete as próprias crenças e paixões a partir do contato com aquele mundo real captado pelos diretores.
Política. Bem-humorado, Marcelo Gomes relembrou a relação com o amigo Karim ("ele tem a melhor risada que eu conheço"). Contou ainda que sua mãe, que nunca vai ao cinema, assistiu a "Cinema, Aspirinas e Urubus" e "Viajo Porque Preciso..." e lhe perguntou se o filho só sabia fazer filmes com personagens dirigindo veículos e falando pelas estradas. "Eu garanti a ela que meu próximo filme não vai ter ninguém viajando", disse, para risos da plateia no anfiteatro do Centro Cultural Yves Alves.
Na mesa também estavam os atores Lázaro Ramos e Hermila Guedes e o roteirista Felipe Bragança (presentes na fotografia ao lado) - todos eles envolvidos com Aïnouz e Gomes em algum momento de suas carreiras. Invariavelmente pelo poder de seus dois longas anteriores, Aïnouz falou do teor político de ambos. "Fazer cinema, para mim, só faz sentido se for um ato político", afirmou. "No caso desses filmes, trata-se da política da raiva e do enfrentamento".
Gomes complementa, sobre "Viajo Porque Preciso...", que a busca era refletir o isolamento e as questões sociais e existenciais encontradas no sertão do Nordeste brasileiro. "O próprio Irandhir Santos disse que foi seu trabalho mais difícil, porque ele se viu tentando dar emoção a um corpo que não existia".
*Originalmente publicado em O TEMPO no dia 24.1.2010
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